sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Silêncio musical


Temos o dever, como pais, mas não só, de formar no sentido de não se desperdiçarem as nossas capacidades.
E temos de explicitar que capacidade não é o que nasce connosco, o chamado talento, mas, ao invés (ao em complemento) envolve trabalho e suor aplicado aos talentos, aos genes, que connosco nascem. Claro que há também aqui um vector que tem a ver com as oportunidades que nos surgem, que nos proporcionam, bem como as que procuramos (aí já entra a capacidade própria) – para não falar da já aqui referida sorte (aquela amiga tão palpável que nos bafeja e desbafeja de quando em vez).
Falo deste tema, hoje, porque é cada vez mais comum ver uma destas duas abordagens:
o simples “tens de ser melhor que os outros” ou o simples “as crianças têm o seu próprio ritmo; com o tempo hão-de ir lá; não vou de maneira nenhuma traumatizá-la e pô-la a estudar piano contra a sua vontade - aquilo é tão difícil e ele é tão pequenino ainda...”.
Ora, eu cada vez mais discordo de qualquer uma destas abordagens. Não que cada uma delas não tenha o seu espaço; como já referi antes, sou bastante incoerente, dubitativa, ora avanço ora recuo. O que quero dizer com isto é que, como em tudo, hão-de haver momentos em que, por mais que combata comigo mesma, ficarei contente por ele ou ela terem sido os melhores em algo (seria hipócrita não o admitir) e também hão-de existir alturas em que não insistirei, em que direi “com o tempo, há-de lá chegar”:
- com o tempo, hás-de aprender a andar de bicicleta sem rodinhas;
- um dia, não terás medo das alturas e até me vais ensinar como conseguiste, para ver se eu consigo também;
- sabes que eu também não gostava nada dos meus desenhos quando pequena; mas um dia, deixei de ligar;
(tendencialmente, torna-se mais difícil dar exemplos da 1ª abordagem, mas isso é só porque temos vergonha de admitir que ficamos felizes por saber que são os melhores e essa vergonha impede-nos de a assumir abertamente – estão a perceber, certamente, que esta é a forma que estou a encontrar de dizer que me apraz sabê-lo, quando acontece, mas o famigerado “complexo de humildade” impede-me de ser mais aberta do que isto).

Bom… mas regressando ao racional e ideais de vida.
Quando nos apercebemos que existe a tal da “capacidade”, ou seja, quando olhamos e vemos que trabalho e suor escorrido sobre os genes e talento podem dar lugar a algo de bom, eu acho que devemos, mais, temos de, obrigá-los a por as preguiças de lado, as dificuldades para trás, mandar os obstáculos para os confins, oferecer-lhes uma mão e, de alguma forma, fazê-los ver, fazê-los ter entusiasmo, fazê-los ter prazer em escorrer trabalho e suor sobre genes e talento.
Digo fazê-los ter prazer. A eles. Porque, sei-o - e tento, quando lucida, tê-lo presente - que difícil é abstrairmo-nos daquilo que gostaríamos que fosse(m) e aquilo que efectivamente é (são). Individualizar, porque únicos.

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Um dia,
- Aborrece-me que a tua professora tenha decidido que ias mudar de música e te tenha dado uma mais fácil, só porque não estavas a conseguir tocá-la, porque sei que ias conseguir a outra e que só ficaste atrapalhado porque ias ter um exame. E os exames são apenas uma forma de nós sabermos o que podemos melhorar e como estamos perante nós próprios. Portanto, meu menino, nem penses que por causa disso te vais deixar cair e toca a treinar como deve ser!
- (silêncio, dedos pouco convencidos teclado à esquerda, teclado à direita…)

Segundo dia,
- Treina mais uma vez, que eu quero ouvir isso como deve ser!
- (silêncio, mãos mais espertas, dedos mais rápidos, escalas, aparentemente e para uma dura de ouvido, perfeitas)
- Muito bem! Quem é que se vai esmerar no exame e dar o melhor de si?
- EU! – Entusiasmante,
sorriso
- e a M. e o F. também!!

Terceiro dia,
- Mãe, ouve só como faço as escalas!
- (silêncio…)
- Eu sou mesmo bom a fazer escalas!
- (silêncio…)
- E ouviste a mão direita? Correu bem, não foi? Vou fazer outra vez!
- (silêncio, uma festa nos caracóis. Suados. Trabalhados.)

 Quando deixamos de falar, quando somos só silêncio, quando dizem por nós… fica muito dito, não?

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Vida Eterna

É frequentemente motivo de reflexão (ou para mim é) quando nos deparamos na vida (vivida ou lida ou ouvida ou vista, qualquer vida) com alguém que, por passar por uma experiência mais dolorosa ou mais limite ou mais desesperante ou mais ardente ou mais surreal, deixa as suas descrenças de parte e passa a crer, piamente, em Deus, na Vida depois da Morte, no Paraíso, no Inferno, nos pecados, nos milagres…
Questionamo-nos (ou eu, pelo menos sim) se, face a tamanho drama, experiência, incompreensão, passaríamos pela mesma metamorfose, se cairiam sobre nós os Pais Nossos e as Avés Marias que dissemos e ouvimos na infância, se passaríamos a ter receio de olhar para trás e transformarmo-nos numa estátua de sal, se passaríamos a desejar que um milagre dos céus acontecesse e alguém nos perdoasse e transformasse tudo em rosas.
Aconteceria?
 

Na passada 3ª feira à tarde, começaram. Meio ao de leve, ainda me permitiram jantar um prato de entrecosto com favas, apesar de já ter tido de começar a fazer alguma ginástica para que nenhum pedaço fosse para o sítio errado. Na verdade, arrependi-me da refeição, mas estava com algum apetite, porque tinha almoçado uma singela pera (altura, aliás, em que tudo começou), depois de um dia complicado.
No dia seguinte, já a coisa piou mais fino. A dor era já acutilante ao ponto de ter de recorrer a analgésico e anti-inflamatório pontual. Nessa 2ª noite, não dormi quase nada e o pouco que dormi foi cheio de seres horripilantes, desconhecidos, uns sem-nome. Fui acordada por elas bem cedo e apressei-me a ligar para ver se me viam de urgência:
“Esteja cá a partir das 13:30 e veremos que possibilidades há de um médico a ver.”
Arrastei-me para o trabalho e durante a manhã as malditas não me largaram, sacanas, finas, mas incisivas e penetrantes. Às 13:00, já lá estava. Antevia uma possível longa espera, tinha levado um livro comigo, mas escusado será dizer que nem uma linha li…
Tive sorte (a sorte, essa nossa amiga, também ela tão palpável) e entrei por volta das 14:00.
“É estranho sr. Doutor. Neste momento já nem consigo precisar bem de onde ela vem; já me dói em todo o lado, mas eu acho que é no penúltimo. Só que ele parece-me bastante bem e até jurava que o tinha desvitalizado há coisa de uns anos…”
Raios-X…
“Tem razão - mostrou - está desvitalizado. Não lhe vou fazer nada porque parece tudo bem. Passo-lhe aqui uma receita de antibiótico e outros quemais e dentro de 4 ou 5 dias já não deve ter dores. Se tiver, logo teremos de ver.”
Aviei-a rapidamente, tomei tudo rapidamente, fui adormecendo as bestas, enquanto, em paralelo, sentia um crescer de rebuçado daqueles enormes, cortados de barra, que me lembro que me enchia a boca de criança quando ia à feira de Darque, na bochecha esquerda. Diferente no sabor (ausente) e irritantemente insolúvel.
Claro que não tardei a questionar, assim que a dor começou a adormecer, ao ponto de voltar a conseguir usar dois neurónios em simultâneo.
Ora, se o raio do molar foi morto e matado e se já nem sinais de nervos vivos tinha, como o comprovou aquela imagenzita a preto e branco, fruto de equipamento científico mais que utilizado nos dias de hoje e já de ontem para descobrir maleitas e desvios e fracturas de todos os tipos em todo o lado, tenho de concluir então que foi a alma dele que regressou dos mortos para me atormentar?
Confesso que não estava nada preparada para isto…

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Unless you can be a dragon...


Aí há coisa de um mês, partilhei no FB:





o que, na altura, me pareceu um “granda lema”, mas, como é bastante frequente em mim, foi entrando, entrando, até que o começasse a questionar (acontece-me rever algo com o que concordei e até partilhei e não perceber tê-lo feito; e não que tenha por hábito “assinar” lemas assim com tanta frequência, excepto quando me perco de mim própria…).

Acontece que, não é que não concorde com a frase, mas, na verdade, conheço muito boa gente que consegue ser um dragão e que são especiais por o conseguirem, mas também por não o serem sempre. Ora, uma das vantagens de se conseguir ser o próprio e de se conseguir ser um dragão é mesmo a de se poder ser o próprio e de se poder ser um dragão, nada mais nada menos que… quando apeteça. Temos assim várias vantagens, como seja, por exemplo, o factor surpresa, a imprevisibilidade, os quais, nos dias que correm, são cada vez mais escassos encontrar nas pessoas, pelo menos quando estamos a falar entre ser-se o próprio ou um dragão (quando estamos a falar de outras facetas, manteremos a imprevisibilidade, pelo menos enquanto tivermos a capacidade de acreditar…). Tal constitui a acção da narrativa que pode ser a nossa vida. A nossa própria, a dos dragões e a dos que têm o prazer de lidar com quem consiga ser um dragão e o próprio! E, quem sabe até, em simultâneo!

Portanto, hoje, uns dias depois, fosse eu artista, pegaria nas canetas de feltro, desenharia um dragão e um eu-próprio a conversar um com o outro e partilharia algo como:
“Always be yourself
Unless you can be a dragon.
Then… choose!”