Temos o dever, como pais, mas não só, de formar no sentido de não se
desperdiçarem as nossas capacidades.
E temos de explicitar que capacidade não é o que nasce connosco, o chamado
talento, mas, ao invés (ao em complemento) envolve trabalho e suor aplicado aos talentos, aos genes,
que connosco nascem. Claro que há também aqui um vector que tem a ver com as
oportunidades que nos surgem, que nos proporcionam, bem como as que procuramos
(aí já entra a capacidade própria) – para não falar da já aqui referida sorte
(aquela amiga tão palpável que nos bafeja e desbafeja de quando em vez).Falo deste tema, hoje, porque é cada vez mais comum ver uma destas duas abordagens:
o simples “tens de ser melhor que os outros” ou o simples “as crianças têm o seu próprio ritmo; com o tempo hão-de ir lá; não vou de maneira nenhuma traumatizá-la e pô-la a estudar piano contra a sua vontade - aquilo é tão difícil e ele é tão pequenino ainda...”.
Ora, eu cada vez mais discordo de qualquer uma destas abordagens. Não que cada uma delas não tenha o seu espaço; como já referi antes, sou bastante incoerente, dubitativa, ora avanço ora recuo. O que quero dizer com isto é que, como em tudo, hão-de haver momentos em que, por mais que combata comigo mesma, ficarei contente por ele ou ela terem sido os melhores em algo (seria hipócrita não o admitir) e também hão-de existir alturas em que não insistirei, em que direi “com o tempo, há-de lá chegar”:
- com o tempo, hás-de aprender a andar de bicicleta sem rodinhas;
- um dia, não terás medo das alturas e até me vais ensinar como conseguiste, para ver se eu consigo também;
- sabes que eu também não gostava nada dos meus desenhos quando pequena; mas um dia, deixei de ligar;
(tendencialmente, torna-se mais difícil dar exemplos da 1ª abordagem, mas isso é só porque temos vergonha de admitir que ficamos felizes por saber que são os melhores e essa vergonha impede-nos de a assumir abertamente – estão a perceber, certamente, que esta é a forma que estou a encontrar de dizer que me apraz sabê-lo, quando acontece, mas o famigerado “complexo de humildade” impede-me de ser mais aberta do que isto).
Bom… mas regressando ao racional e ideais de vida.
Quando nos apercebemos que existe a tal da “capacidade”, ou seja, quando
olhamos e vemos que trabalho e suor escorrido sobre os genes e talento podem
dar lugar a algo de bom, eu acho que devemos, mais, temos de, obrigá-los a por
as preguiças de lado, as dificuldades para trás, mandar os obstáculos para os
confins, oferecer-lhes uma mão e, de alguma forma, fazê-los ver, fazê-los
ter entusiasmo, fazê-los ter prazer em escorrer trabalho e suor sobre genes e
talento.Digo fazê-los ter prazer. A eles. Porque, sei-o - e tento, quando lucida, tê-lo presente - que difícil é abstrairmo-nos daquilo que gostaríamos que fosse(m) e aquilo que efectivamente é (são). Individualizar, porque únicos.
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Um dia,
- Aborrece-me que a tua professora tenha decidido que ias mudar de música e
te tenha dado uma mais fácil, só porque não estavas a conseguir tocá-la,
porque sei que ias conseguir a outra e que só ficaste atrapalhado porque ias
ter um exame. E os exames são apenas uma forma de nós sabermos o que podemos
melhorar e como estamos perante nós próprios. Portanto, meu menino, nem penses que por causa disso te vais deixar cair e toca a treinar como deve ser!- (silêncio, dedos pouco convencidos teclado à esquerda, teclado à direita…)
Segundo dia,
- Treina mais uma vez, que eu quero ouvir isso como deve ser!- (silêncio, mãos mais espertas, dedos mais rápidos, escalas, aparentemente e para uma dura de ouvido, perfeitas)
- Muito bem! Quem é que se vai esmerar no exame e dar o melhor de si?
- EU! – Entusiasmante,
sorriso
- e a M. e o F. também!!
Terceiro dia,
- Mãe, ouve só como faço as escalas!- (silêncio…)
- Eu sou mesmo bom a fazer escalas!
- (silêncio…)
- E ouviste a mão direita? Correu bem, não foi? Vou fazer outra vez!
- (silêncio, uma festa nos caracóis. Suados. Trabalhados.)