domingo, 25 de maio de 2014

Passatempando em forma de sacal


Ontem, fui fazer um curso chamado “Desformatar através da escrita”. Tenho sempre alguma relutância em chamar “curso” a estes “encontros-de-pessoas-que-nem-se-conhecem-bem-e-que-aderem-a-desafios-só-porque-têm-alguém(ns)-a-pressioná-los-e-pelos-quais-se-paga” e estive até há pouco para tentar descobrir uma expressão mais curta que pudesse utilizar.

Ontem, participei num passatempo de desformatar pela escrita.

Foi giro (ri-me várias vezes) e passei o tempo (que na última semana estava difícil de fluir, razão principal que me fez inscrever neste passatempo, razão que não terá sido tão simpática como as que foram apresentadas, quando questionadas, pelas restantes participantes – éramos todas mulheres -, mas que era a sincera, pelo que tão válida como as outras, as quais deambularam muito pela palavra desformatar, que é, efectivamente, interessante).

Após vários exercícios de passagem do tempo em que brincámos com palavras, sons, tactos e observação, já na recta final, tivemos de apresentar um cartaz que construíramos com recortes de jornais e revistas.

Não vou falar do meu; até porque, só no instante iminente da sua apresentação, me apercebi que era suposto ser um cartaz e que teria de o apresentar aos restantes passatempeiros. O meu espanto foi tanto (nestes passatempos mostro-me quase toda, pelo que não escondi que não tinha ouvido grande coisa do “enunciado”), que fui indigitada para ser a primeira.

Levantei-me, pespeguei o papel com recortes no quadro, olhei para ele para ver que tema estaria ali (para além do “eu”, já que tinha sido eu a escolher o que recortara e colara) e decidi apresentar Caos.

Regressando…

Uma das passatempeiras, mais nova que eu uns 10 anos, mais coisa menos coisa, muito bonita, expressiva, portuguesa ex-estudante em Londres e brevemente emigrante na mesma cidade, certamente curiosa e talvez um pouco anacrónica, sem dúvida sensível, fez um cartaz em que abordava, entre outras coisas, o excesso de informação dos dias de hoje; o olhar sem observar.

No final, deveríamos colocar questões, debater, enfim, passatempar.

Adoro. Tive algo a questionar ou a apontar em todas – uma das vantagens de não conhecer as pessoas de lado nenhum e de saber que depois é só um “até à vista” sem significado nenhum, é que nos tornamos muito mais atrevidos, desligados de hipóteses de reacção.

Perguntei:

- Em relação ao excesso de informação, achas que o problema é exactamente esse, ou é mais o que as pessoas fazem (ou deixam de fazer) com ela ou por causa dela?

Respondeu:

- Claro que o problema está sempre nas pessoas e na sua incapacidade de filtrar a informação.

Falou-se mais um pouco sobre o tema, ainda tomei a palavra uma vez mais, tentando puxar para a educação, mas o tempo apertava (estávamos em vias de passatempar 1 hora para além do previsto/pago e ainda faltava a que já era a minha preferida passatempeira) e o meu cérebro estava a funcionar, mas muito mais rápido do que as palavras se desformatavam pela boca.

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Passatempar não é mesmo que sacaletaliar. O primeiro exige grande parte das vezes a existência do outro. Às vezes prefiro-o: porque gosto de ser contestada, adoro discutir; mas, no segundo, tenho mais tempo para o eu e para as palavras do eu – embora tente não dar demasiado tempo ao cérebro, por tender para o novelo, para a ex-formatação.

O que eu queria discutir era algo como – antigamente, tipicamente antes da internet e das redes sociais – a informação existente também era imensa. Mas dificilmente encontrávamos quem dissesse que havia excesso de informação. Porque era preciso querê-la. Procurá-la.

No hoje, ela é-nos bombardeada, vem ter connosco. A que até nos desperta curiosidade, mas também toda a outra.

E desaprendemos de procurar.

Quanto mais não seja porque despendemos tanto do nosso tempo a assimilar (muitas vezes, apenas olhando, como disse a M., e sem nos preocuparmos em observar) a informação que chove a cântaros sobre nós, que deixamos de ter tempo ou energia para procurarmos a informação que efectivamente queremos.

Ou seja (nestas próximas frases vou tentar descomplicar – já percebi que me enovelei, de novo -, tentando não cair lacónico, "o problema são as pessoas"):

Eu acho óptimo ter tanta informação à minha mão. É uma revolução! Uma revolução absolutamente maravilhosa e que os nossos netos, se não os nossos filhos (já que o ensino tem tendência para também andar um pouco anacrónico) hão-de estudar esta revolução.

Eu acho óptimo que, quando me deito e estou cansada demais para ler, mas não consigo adormecer, possa premir um botão e deambular por títulos sem jeito nenhum, dando apenas ao polegar.

Eu acho absolutamente extraordinário o que tenho feito conforme leio o livro que me tem acompanhado nos últimos tempos, pejadinho de referências a escritores, a obras, a movimentos, a épocas de história, a aspectos de geografia, o que me tem suscitado curiosidade - viro-me para o lado, digito o que quero e uma wikipedia vomita o que já se disse sobre o que pesquiso.

É absolutamente espantoso. Uma mais-valia soberba que estou a ter o privilégio de viver.

E não acho que o problema maior seja as pessoas não filtrarem a informação que têm ao dispor.

Acredito que seja, à semelhança de sempre, uma questão de educação, de crescimento. Quero que os meus filhos cresçam com capacidade de questionar; com capacidade de procurar se se sentirem curiosos; com capacidade de estudar. Como o desejaram tantos pais e professores e avós e amigos em tantas outras gerações.

E com a vantagem de viverem hoje e amanhã.

 
 

PS – Não vou falar dele, mas deixo-o aqui. O meu caos. Uma das perguntas que me fizeram depois foi:

- Acreditas no Pai Natal?
 
 
PS2 - Continuo sem conseguir rodá-las. Mas, aqui, até acho que combina! :-)

 


vrrrr, para um lado / vrrrr, para o outro


Eu sei que as segundas-feiras são sempre dias difíceis, mas, francamente, também não se percebe como é possível uma revolução destas!!!
O meu carro é daqueles todos novos, cheios de mariquices e de automatismos. Um deles é que o sacaninha consegue perceber quando está a chover e, acto imediato, põe-se o limpa pára-brisas a mexer, para a esquerda e para a direita,

vrrrr, para um lado
vrrrr, para o outro

com velocidade proporcional à intensidade da precipitação e à velocidade que levo.

Pois que, na passada segunda-feira, o tipo resolveu manifestar-se: não falou comigo previamente, não me disse se era revolução, se era greve, se era preguiça, se era cansaço, mas, o que é um facto, é que se recusou a obedecer e agir como lhe era suposto, face à chuva (que não era pouca) que caía sobre a minha frente.
Na dúvida de ser problema do cérebro e das ordens ou de ser o próprio – o limpa pára-brisas – resolvi procurar na panóplia de botões, manetes, rodinhas em manetes, interruptores que se dispõem em torno do volante, aquele que me permitiria forçar o seu movimento, antes que me espetasse em algum veículo ou pedestre nas movimentadas Almirante Reis ou Gago Coutinho. Tive alguma dificuldade em manter um olho na estrada (na altura já tinha posto os óculos, objecto que nunca sai do carro e de que só me lembro quando chove, quando é noite e estou cansada ou quando tenho mesmo que ler tabuletas, o que raramente acontece) e outro deambulando à esquerda e à direita por cima e em torno do volante, mas lá encontrei o fatídico sinal em forma de leque cortado em baixo com pinguinhas (felizmente, meu conhecido dos tempos de épocas menos automáticas) e empurrei a manete para baixo.

vrrrr, para um lado
vrrrr, para o outro

Rodou.
Deu de si.
Fez-se vista à minha frente.
Não era do cérebro.
Pensei:
“será que estava em modo de desligado em vez de auto?”
Resolvi dar-lhe o benefício da dúvida. De facto, podia ter-lhe tocado lá sem me aperceber. E não podia acreditar que o tipo estivesse tão baralhado quanto eu, só porque na véspera tinha estado muito quietinho no seu sítio, paradinho a apanhar sol junto à praia, onde eu e os meus filhos jogávamos à bola, fazíamos construções na areia e (eles) até tomavam banho.
Não. O tipo não podia estar tão desorientado quanto eu, que também olhava à minha volta e via aquela água que caía sobre nós, pensando no pobre do J., que tinha ido para a escola de calções, e na M., que tinha levado uns tenizinhos ligeiros, de pano.
O tipo era inteligente. O problema tinha de ser meu.

Encontrar com um olho (mesmo que com uma lente à frente) um símbolo até meu conhecido no meio de várias manetes – nessa altura já tinha percebido que era uma manete que tinha uma roda em torno dela - é uma coisa; outra é, com um mesmo só olho, perceber qual a sua posição. A custo, lá percebi que tinha 4 posições:
Off
Auto
Lo
Hi
por esta ordem.

Bom… Se agora funcionava e se eu tinha forçado a manete para baixo, tudo indicava que estaria agora no “Lo” e que estava antes no “Auto”… Mas… e se eu tivesse forçado demais para baixo? E se tivesse saltado dois degraus em vez de um e estivesse antes no “Off” e agora no mesmo “Lo”?

Empurrei, desta feita para cima, mui-to de-va-gar, de forma a ter a certeza de que só passava um limite e não dois…
Nada. Absolutamente nada. Não se mexia…
Será que está mesmo de greve? Sentir-se-á revoltado? Será que não sente a chuva?
Isso seria muito estranho porque, num repente, voltei a perder a vista para lá para fora que é, num carro pelo menos, a mais importante…
Num ápice, mas, de novo, mui-to de-va-gar, voltei à posição que me permitira circular com um mínimo de segurança e fiquei pensando que era impossível que um reles limpa pára-brisas pudesse ter mais vontade que o clima.
Já não me bastava o frio que sentia nos pés e naquele que imaginava que os cachopos iam sentir ao longo do dia… Nem um guarda-chuva, nem impermeáveis: apenas um casaquito e uma blusa de algodão sobre os seus corpos pequenos, mesmo que muito mais mexidos ao longo do dia que o meu…

Ter um limpa pára-brisas em automático de greve…
Se ao menos estivesse confortável com o que via. Mas estava com saudades daquela inteligência que percebe se vou mais depressa, se vou parar num vermelho, se chove mais, se chove menos…

Decidi que o erro estava em mim. Não podia ser.
Esperei um sinal vermelho – que é coisa que nunca acontece quando queremos que aconteça e que está sempre a acontecer quando precisamos que não aconteça, ou seja, um sinal vermelho, é assim como um espelho de vários factos da vida -, quase me levantei, voltei a olhar a ordem na manete e pensei:
“Bom. O tipo podia estar, inicialmente, no “Auto”, mas eu não lhe dei o tempo suficiente para ele se aperceber do que copiosamente caia lá por fora (ele não deixa de ter razão no espanto, lá isso não deixa), depois eu, bruta, saltei dois degraus e mandei-o para o “Hi”, a que se seguiu um “Lo”, mas, tão “Lo” que nem lhe dei tempo para reagir (de facto, não sabia qual a inércia de um “Lo”, podia ser que demorasse algum tempo a reagir) e lá estaria eu outra vez no “Hi” que, sem dúvida, funcionava, mas não me deixava ouvir a TSF como deve ser.

Só havia uma coisa a fazer: parecido com o que costumamos fazer em crises existenciais – levá-lo ao limite e fazê-lo andar um passo de cada vez.
Assim foi – tudo, em jeito de bruta, para cima.
Parou.
Devagar, um para baixo.
Tem de dar.

Nada.
Nada de nada.

- Merda! Quero lá saber dos humores do meu limpa pára-brisas! Já estou na Rotunda da BP, o que interessa é chegar ao trabalho e isso já está quase.
Manete toda para baixo, já não queria saber se a velocidade era condizente com o estado do tempo, só queria estacionar e sair.
O que fiz, pouco depois.

Ao sair, fingi que não ouvi (não por eles, porque ainda não sinto que os objectos que me rodeiam tenham lugar a privacidade, mas mais por mim, porque achei que assumir que ouvira uma conversa entre um casaco e um limpa pára-brisas era algo impossível de encaixar mentalmente numa segunda-feira):

Casaco: “Não te armes mais em parvo…”
Limpa pára-brisas: “Então porquê? Tenho os meus direitos! E acho mais que justo que não trabalhe, a não ser que seja obrigado, pelo menos, entre 15 de Maio e 15 de Setembro!”
C: “Repara. Sou um casaco ligeiro, mas tenho jeito de gabardine. Ela comprou-me em Abril, nem sequer eram saldos ainda, e eu estava ali no armário, com etiqueta e tudo. Não sou propriamente para a chuva, mas também não sirvo para o calor que já se sentia nos últimos dias.”
LPB: “E eu com isso…”
C: “Ouve-me até ao fim.”
LPB: “Vá… despacha-te que eu não tenho o dia todo. Tenho mais que limpar…”
C: “Estou contente por ela me ter arrancado a etiqueta, que já me estava a incomodar e a fazer cócegas.
LPB: “E então?”
C: “Então? Então que estou tão contente por ter saído do armário, que se te decidires a funcionar como deve ser, ofereço-te uma roçadela. Podes escolher qualquer ponto do teu corpo ou do teu cérebro ou dos teus tentáculos. Já percebi que parece que és tu que controlas tudo - podes sujar-me e tudo!”

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Eu não ouvi nada.

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Quando voltei ao volante, antes de o ligar, certifiquei-me de que estava em “Auto” (com a técnica do limite), dei à chave e

vrrrr, para um lado,
vrrrr, para o outro.

E uma nódoa no cinto do casaco que havia estreado naquele dia e que me obrigaria a um novo:
“Mãããeeee! Como se tiram nódoas, potencialmente de óleo, e ainda por cima sobre beje????!!!!”

domingo, 11 de maio de 2014

Soprando uma bola de sabão





Todos os anos, o ginásio onde a minha filha faz ginástica desde os seus 2 anitos mal feitos organiza um sarau onde todas as modalidades são mostradas aos pais, avós e familiares que empunham invariavelmente, câmaras, máquinas, telemóveis, para registar aqueles minutinhos de palco, em pleno grande auditório do CCB e onde, na classe em que ela está, se misturam cambalhotas, passos pela trave, equilíbrios no espaldar, saltos no trampolim, posições no cavalo e balouços na barra, com música alta, adeuses à plateia, diversos tipos de olhares das crianças – nervosos, ansiosos, orgulhosos, espantados, perscrutadores.
Na classe anterior – Baby Gym – as crianças são acompanhadas por um dos pais e eu tive o prazer enorme de participar naquela confusão de crianças, jovens, adultos que se espalham pelos bastidores do Centro Cultural, numa confusão que aparenta o caos, mas que, se tomarmos bem atenção, está sempre muito bem organizada e em que todos sabem exactamente o que se espera que façam e em que altura devem começar a subir as escadas para o palco. De todas as vezes em que participei – o que fiz com os meus dois filhos – foi uma emoção enorme e pude sentir de perto a ansiedade que antecede a entrada em palco e, depois, a satisfação do dever cumprido.
Os saraus do ginásio têm sempre um tema e as classes um sub-tema, mediante a qual se define a indumentária de cada um – já assistimos à Natureza, aos Descobrimentos, aos Jogos Olímpicos, aos Anos 80, ao Asterix e Óbelix… - já não me lembro de todos.
 
Não sei qual o tema deste ano.
 
Só sei que… fui informada há poucas semanas que tinha de fazer um fato de bola de sabão para a minha filha… Leram bem. Bola de sabão! Como raio se faz um fato de bola de sabão??? Logo eu… Não sei bem o que herdei dos meus pais ou o que fui adquirindo, mas nem de um nem de outro nem nos meus conhecimentos adquiridos consigo encaixar a costura! Mesmo tendo tido uma avó que foi excelente costureira e, desde cedo e até que seus dedos o permitiram, pude ir acompanhando a confecção de vestidos, blusas, camisolas, mantas, toalhas, sapatinhos, gorros, os quais – para mim de forma próxima da mágica – iam aparecendo, brotadas de suas mãos e restantes utensílios.
 
Durante algumas semanas, fui fotografando o fato que a professora de ginástica já estava fazendo para a sua filha, fui tentando gravar mentalmente todos os pormenores, onde estavam as costuras, como estavam feitas as aberturas das pernas, dos braços, os nomes dos materiais, enfim, tudo o que me ajudasse neste verdadeiro desafio.
Claro está que deixei para o último dia (neste caso fim-de-semana) e acordei ontem, já tarde, com este único objectivo traçado para o dia.
Primeira constatação. Como se chamava mesmo o material que é suposto fazer o forro? Bolas! Já se me foi outra vez e não tenho lata para perguntar pela enésima vez à R. Google, se faz favor.
Encontrei várias referências ao material, mas aparecia sempre designado como “enchimento” e não com aquela palavra que me soaria familiar, assim a lesse. Passado algum tempo em que pude verificar que retrosarias abertas só existiriam no Colombo, Vasco da Gama e mais dois ou três sítios semelhantes de onde normalmente fujo a sete pés, ainda por cima em fins-de-semana de sol, lá encontrei. “Drakalon”! É isto mesmo!
Puxei pela cabeça para ver de que forma fugiria daqueles centros e lembrei-me que o Corte Inglés tinha uma secção de retrosaria e, não que me agradasse muito lá ir, tinha a vantagem de poder ir a pé e sempre podia depois ir um pouco à Gulbenkian para ler. Seria perfeito.
Tomei banho, vesti-me confortável e saí. Antes ainda parei num café para beber uma coca-cola à saúde da noite anterior e comer uma bifana por perto. Desta vez, Duque D’Ávila acima, passei pela famigerada porta dos “empurre” da Zara, ainda em obras, determinei-me escadas abaixo, direitinha à retrosaria, estava decidida a não me demorar ali dentro longe do sol mais que o mínimo necessário.
Dirigi-me ao empregado que estava ao balcão e, com o meu mais confiante tom, disse:
- Queria “drakalon”, por favor!
(por via das dúvidas tinha tomado nota da palavra no telemóvel, mas nem sequer foi preciso, consegui finalmente fixar).
- Concerteza, por aqui.
Segui o homem até um recipiente onde havia uma série de tecidos que não eram tecidos enrolados em rolos, ele apontou-me um deles, palpei-o com toque de conhecedora e disse:
- É isto mesmo!
O senhor tirou o rolo, foi-se dirigindo para o balcão, entretanto também acompanhado por uma outra empregada da secção, com ar mais entendido, e continuei:
- Também precisava de feltro branco!
Caiu-se-me todo o entusiasmo quando ouvi:
- Pois. Não temos. Só temos feltro cortado, em quadradinhos…
Fiquei boquiaberta. E agora? Comecei a gaguejar e toda a minha segurança foi-se.
- Não tem?! Sabe, é que eu tenho de fazer uma bola de sabão, hoje… É para o sarau de ginástica da minha filha… Como é que eu vou conseguir fazer uma bola de sabão sem o feltro?
Eles entreolharam-se e puxei do telemóvel para mostrar uma das fotos que ali tinha do modelo, mostrei à senhora e fiquei a olhar para ela para ver se, assim, percebia melhor. A senhora, simpática, ainda disse:
- Então e se fizesse com #%&/#? – vocês não estavam à espera que eu fixasse qualquer outro termo deste género, pois não?
- Não pode ser. É que eles têm de ir todos iguais e eu só sei fazer se for com feltro…
- Pois, sabe, não vai ser fácil. A esta hora, Sábado, terá de ir a Campo de Ourique. Só aí encontrará…
 
Fiquei tristíssima com a situação, ainda consegui manter a calma suficiente para conseguir pedir todos os restantes materiais – cola de tecido e elástico – saí da loja com o “drakalon” esvoaçante em punho (que me dizia, mesmo de dentro do saco enorme, que iria ser uma excelente bola de sabão, cheio de vontade de voar), fiquei pensando um pouco com os meus botões, disse adeus à Gulbenkian e regressei em direcção a casa.
 
Lembrei-me de repente que tinha feito uma encomenda na FNAC do Vasco da Gama e já não me custou tanto imaginar-me a pegar no carro e ir ao fatídico local em fim-de-semana de sol.
Ainda tentei estacionar na rua para não me sentir tão longe dele, mas nem isso consegui. Moles de gente no centro e outras tantas no Parque das Nações, fui directo à retrosaria. Lá estava ele, a olhar para mim, rolo de feltro branco imaculado que iria, em breve, tornar-se na minha bola de sabão. A minha filha não deve medir muito mais que 1 metro e supostamente precisaria do suficiente para ir dos ombros até ao rabo (o que, vim a saber depois, são 45 cm), mas resolvi pedir 1,50 de feltro branco, só para me precaver.
 
Passei na FNAC, apanhei uma “happy hour” de sumos naturais onde aproveitei para beber um adelgaçante e trazer para casa um energizante antevendo já a longa noite que iria ter até conseguir soprar bola de sabão.
 
Meti dedos, cabeça, fita-métrica, agulhas, alfinetes, tesoura à obra deviam ser, já, umas 20:00. Liguei a TV para me sentir acompanhada e:
- cortei o feltro com muito cuidado, primeiro com quase 90 cm de comprimento, depois (após receber mensagem sobre o seu real comprimento), com bastante menos;
- fiz costura interna ao longo de toda a sua altura até que fiquei com um cilindro de feltro branco;
- medi com imenso cuidado o “drakalon”, cortei 2 rectângulos (sobrou-me “drakalon” e feltro para encher a casa-de-banho de bolas de sabão), dispus a cola na parte da frente do avesso do feltro (tendo em atenção que a costura deveria ficar centrada em relação ao corpo), colei os rectângulos e depois repeti na parte de trás.
- no que passei a ver como sendo a parte de baixo (até este momento, ainda se mantinha a simetria horizontal do fato), dobrei duas partes do feltro (com prévios cortes, de forma a que não ficassem pregas) e fiz duas espécies de bainhas ocas por dentro por onde passei os elásticos que havia cortado baseado nas medidas que tinha recebido das suas coxas - e simulando nas minhas próprias coxas, o que deveria reduzir ao tamanho real para que ficasse justo e não impedisse nenhuma cambalhota – 2/3 cm;
- cosi entrepernas (entre as duas aberturas), também do avesso e com ponto que já começava a ficar mais espaçado que o inicial (lembrei-me da minha avó e de ela comentar sempre comigo que não se devia ter uma linha muito comprida, a que ela chamava “linha de preguiçosa” – percebi que ela tinha toda a razão depois de umas 6 vezes em que a linha se embaraçou toda o que me obrigou a fazer remates onde não contava e a tirar nova linha, enfiar na agulha, e lançar-me na costura que ficara a meio);
- virei a peça, e lancei-me para a gola, onde voltei a usar a mesma técnica de bainha oca, mas desta feita em todo o perímetro da abertura superior, fazendo um esforço por manter o ponto miúdo, já que seria a parte de cima e, portanto, a mais visível, mesmo que para mim não já que dificilmente conseguirei bilhetes para a primeira fila.
- Medi a gola de um vestido da M., mas, receosa, não cortei demasiado o elástico que constituiria a gola, pespeguei-o lá para dentro preso a um alfinete de ama, percorri toda a bainha, prendi-o entre os dedos e cozi-o, como havia feito nas duas coxas.
 
Por volta da meia-noite, sem sequer ter jantado, tinha conseguido! Um perfeito saco de batatas fofinho e branco, com volume, buracos justos para as pernas e uma gola que fazia crer que assim que a M. entrasse na “coisa” haveria de lhe cair pelos ombritos delgados abaixo. Mas tinha atingido o meu primeiro objectivo! Estava orgulhosa! E com o indicador esquerdo numa lástima, pejadinho de picadas de agulha a que ele não conseguiu esquivar-se a tempo…
 
Mandei mensagem ao R., dizendo que a bola de sabão estava pronta para a prova que ditaria as aberturas para os bracitos (e que eu já decidira que seriam só cortadas e não teriam bainha porque o indicador esquerdo me é precioso para outras tarefas mais…).
 
Ceei uma bela de uma feijoada (que era o que havia), mantive-me um pouco mais no sofá, pus a bola de sabão sem braços em lugar de destaque e apaguei a luz.
 
A M. chegou para a prova, entusiasmada, mas reticente (vá-se lá saber porquê…). A primeira coisa que disse quando enfiou as pernas no “saco” foi:
- como é que eu vou conseguir fazer o pino com isto???
Esta era uma questão que já me tinha ocorrido, confesso, mas disse-lhe com toda a confiança:
- não tarda dou-te uns ombros de jeito e uns braços e vais ver que vai ser possível!
Prendi o que haveria de cortar do elástico para que a gola se mantivesse nela sem cair, marquei com esferográfica o lugar de um dos braços, ela deu dois ou três pinotes a ver se as pernas estavam suficientemente libertas, dei-lhe uns beijos e despedi-me com um “até amanhã; vais ver que vai ficar muito bem". Disse vários adeus da janela, a par do vizinho de baixo, peludo e julgo que caniche.
Afinei o elástico, cosi-o no seu novo comprimento, recortei duas aberturas laterais, simétricas, empoleirei o resultado do trabalho nas costas do sofá, respirei fundo. Acabara de soprar a minha primeira bola ginasta de sabão!
 
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Só um pequeno pormenor.
Quando me viu com a esferográfica em punho para marcar o bracito comentou logo:
- Mãe, assim vai ficar com os riscos!!
- Não te preocupes, eu depois vou cortar esta parte…
E ia… Se tivesse ficado no sítio… Simétrico e não sobre o “drakalon”, como ficou…
E agora ainda vou ter de puxar de todo o resto do meu amor e humor para perceber com se tira um “xis” em esferográfica azul de uma bola de sabão de feltro, sem que esta deixe de se manter branca imaculada, que não encolha (por favor, que não encolha!) e sem que o raio do forro de “drakalon” descole… Mããããe!!!!!!

Imposição dada à contagem dos anos


São os anos que se deixam cair sobre nós ou somos nós que os chamamos a nós, qual feiticeiro da chuva ansiada?

Porque é que
- com 9 anos e ainda a chuchar no dedo???!!!
e não
- estás com os dentes todos tortos por chuchares no dedo. Tens de deixar de o fazer!
?

Vamos muito bem na rua, cruzamo-nos com uma sexagenária de leggings leopardo e blusa verde alface bem decotada e justa, salto agulha de verniz rosa choque e haverá muito provavelmente (talvez eu própria) quem diga:
- Com aquela idade e ainda se presta a estas figurinhas…
e já nem notamos a celulite das pernas e do rabo que se nota vincada pela lycra, de tão colada, e não olhamos para as banhas que sobressaem, lateralmente, pendem e tremem muito, principalmente porque o salto se prende em tudo quanto seja junta de calçada da cidade (maravilhosa). Prendemo-nos às rugas e não já não vemos mais nada.

Se víssemos aquela mesma mulher, mas 30 anos mais nova, com as mesmas roupas, a mesma celulite, as mesmas banhas e a mesma falta de jeito para andar de salto, diríamos:
- Que mau gosto!
- A mulher não se olha ao espelho?
- Que susto de gaja! Credo!

Aos 20 anos, apanhamos uma “granda bezana” e somos fixes; aos 40, devíamos ter vergonha. E, na verdade, há-as fixes aos 20, como as há aos 40, há-as vergonhosas aos 40, como aos 20.

Com 50 anos, não faço uma cirurgia plástica para tornar as mamas mais firmes, porque tenho 50 anos e isso é ridículo.

As nossas opiniões sobre o que as pessoas (outras, mas, muito, nós próprios) fazem ou como agem estão tão ligadas à idade delas (nossa), que isso me faz pensar que somos nós quem atira “anos” para cima dos corpos e não eles que vão caindo, caindo, como pó que vai caindo sobre os móveis lá de casa.

As nossas noções de estética, de ridículo, de noção de vergonha na cara não são absolutas, são muito subjectivas (o que é natural), mas também muito relativas e baseadas nos anos que temos ou vemos.

Ora. Eu acho que isto não é natural; que nos é imposto. Começa na chucha, na fralda, nas birras e tendencialmente justificamos que tal não é aceite, não pela simples razão de não ficar bem, mas porque já somos demasiado grandes para isso. E depois vai crescendo e deixamos de ir ver um concerto daquele grupo de rock apenas porque – já estão demasiado velhos!

Ao mesmo tempo, tenho a perfeita noção que sou a primeira com que me deparo, mal movo um pé, que padecerá dessa doença do esquecimento do absoluto (mesmo que subjectivo), devido à relatividade, que nos impomos, da contagem de aniversários (absolutos); as inúmeras pausas que tenho feito ao escrever este, associadas às questões, às vontades que tenho tido de encher este texto de excepções, de parêntesis (e que tenho estado a controlar desde o início), de à partes, será disso prova – é um texto de luta; uma luta de lados do cérebro, a ver qual deles é mais rápido a chegar à mão que enverga a caneta.

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Ontem à noite vi um homem com um corpo absolutamente perfeito, calças muito justas, douradas, que mudou, depois, para prateadas, com um sexo protuberante, brilhante, de prender o olhar sem nos julgarmos; casaco de penas, preto, de cavas; blusas transparentes, luminosas, justas; pelos do peito visíveis, bem como os dos peitorais; o ventre liso, perfeito; botas de salto, bem alto; movimentos sensuais, brutos, muito sexuados por vezes.

Adorei. Era bonito. Meu olhar atraído pela imagem, que se sobrepôs, muitas vezes, ao que ouvia. Enérgico, possante, dono dos movimentos, absolutamente ciente de que havia impacto, fosse ele qual fosse, nos seus gestos, quando se despia, quando olhava, quando se nos dirigia, quando dançava. Enquanto cantava.

Adorei. Grande show!

E tentei ir chutando para os confins, o lugar-comum de me lembrar das últimas palavras da R., antes de o concerto começar, assim que seus pés pisaram o palco em pose de touro belo:

- Já tem 72 anos! É 3, 4 anos mais velho que o teu pai…

Achei que, se me deixasse apanhar por essas palavras, setenta e dois anos cairiam sobre ele, num repente, e teria sido eu a puxá-los, feita parva, feita íman. Quando, na verdade, isso era indiferente. Para ti, Ney, com anos; e sem banhas.
Porque, esteticamente, bonito

terça-feira, 6 de maio de 2014

Breve (e incompleto) texto inquisitivo sobre limites


Gastamo-nos?

Será que, quando nascemos, para além da cor dos olhos, dos jeitos do cabelo, das covinhas que nos acompanham sorrisos, também temos uma lista cravada que quantifique o que brotaremos, o que sentiremos?

Será que…

Após 24 litros de água (quase tudo, e cloreto de sódio) brotados, com variação de volume per lágrima entre os 3ml e os 7ml, perderemos a capacidade de chorar?

Teremos espaço interior para sentir saudades até ao limite correspondente a 15 pessoas durante 163 dias, não retirando as horas de sono, ou seja, em média, 58.680 pessoasxhora, durante uma vida?

Será que assimilaremos, sem pestanejar,
- cinco desilusões graves
- trinta e três desilusões moderadas
- cento e seis desilusões ligeiras
após o que, deixaremos de conseguir iludir-nos?

Será que a função que relaciona os estímulos necessários para que cada indivíduo atinja um estado de encantamento ao longo do tempo é uma exponencial em que, para cada um de nós, o que varia é a base ou o sinal positivo ou negativo da potência, com maior preponderância para a exponencial positiva, ou seja, estímulos necessários crescentes, mediante a passagem do tempo?


Com uns à parte, para casos notáveis, como traumas e maleitas de tempo?

Podemos ter escrito que nasceremos e cresceremos com uma visão impecável, até que começamos a ver turvo aos 75 com decréscimo regular de capacidade de visão até à morte ou, por um trauma, um acidente, deixarmos de ver em tenra idade.

Podemos passar por um momento traumático de tal força que fará com que nosso corpo apague todos os contadores internos e passe o ponteiro logo num ápice para o infinito, sem passar pelos registos intermédios e, até, sem retorno.

Estou tentando falar de quotidiano, de vida lenta, mesmo que no meio de toda a pressa.


Ou será que, mesmo esta, tem constância de trauminhas a que se sucedem felicidadezinhas e se vai andando na linha do tempo com inflexões para cima e inflexões para baixo, cada qual com seu andamento – linear, exponencial, logarítmico, quadrático -, em jeito de gráfico vivo e, algures, no eixo perpendicular, há um limite superior e outro inferior, ultrapassados os quais, quer nos traumas quer nas felicidades, tudo se esquece, tudo se apaga ou tende para infinito (os tais contadores internos com que nasceremos)? E, até tocarmos esses limites, tudo tem regresso; vamos andando em regime elástico, sem atingirmos o estado plástico, mantendo o objectivo de nunca atingir o plástico, o irreversível?


E, quando atingimos o estado plástico, isso significa que ocorre logo a rotura? Ou só de partes de nós? E se atingir um alicerce? Manter-nos-emos vivos, ou seremos só um corpo que anda? Haverá possibilidade de retorno, com injecções de confiança, intervenções cirúrgicas de carinho, choques químicos de quimera? Serão os terapeutas, os amigos, o tempo, a ocupação os agentes de restauro das nossas roturas? E terão de agir antes da rotura ou há esperança para além desta? Ou, pelo menos, uma expectativa? E, quando restauramos um quadro, não ficam as marcas da tela antiga? Depende só da habilidade do artista?


Quantos de nós conhecem outros tantos de nós que não conseguem verter uma lágrima, mesmo perante um enorme sofrimento, apesar de já terem enchido a terra de tantas e por tanto tempo?

E outros que não conseguem sentir saudades, mas que passaram anos a sofrer com elas?

Quantos olhamos e sentimos vontade de abanar num gesto sem fim, até que saia de lá de dentro qualquer sinal de encantamento?

Quantos?


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Apesar de (agora relido) não parecer, este não pretende ser um texto pessimista. É um texto absolutamente inquiridor, mas não negativo. Na verdade, sinto-o até muito incompleto, por explorar. Na minha cabeça tenho ene imagens que gostava de conseguir passar a palavras e que são perguntas – muitas - construídas de observações e não passíveis de colocar em nenhum motor de pesquisa para que este cuspa a resposta, em forma de gráficos, mapas, textos ou ilustrações. Algures nestas linhas, está o clic, que me bateu, mais uma vez, no carro, ao almoço, com sol e ouvindo música que ouço em dias positivos. Mas não digo em que linha. Não me apetece.
Questionem(-se).

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Dobra(s) 1 (não é bem a 1, mas... sacal para vocês, atentos!) – Por detrás do traço


(parêntesis inicial sobre o título – resolvi que os et alia que diziam respeito a dobras, passariam a ser dobras… só para não enjoar. Um dia, posso mudar outra vez; mas hoje são dobras.)

Recordo como se de um ontem se tratasse, do relado do E. alusivo à sua recém viagem à fantástica cidade de Barcelona, com um entusiamo tal que só se ultrapassava, no que à cidade dizia respeito, quando falava de Nova Iorque, Paris ou (a, também minha querida) Lisboa – o parêntesis de querida fica só em Lisboa, mas tal deve-se ao adjectivo que acarreta um peso que (ainda) não consigo usar quando menciono outras cidades (e, muito menos, se abarca o que não conheço…).
Temos tendência para escolher um tópico, um tema, um ponto no meio da história, do relato que, por alguma razão, prende mais a nossa atenção ou curiosidade.
Na altura, já eu me havia apaixonado pelo Gaudí e, dentro dele, d’A Sagrada Família, obra sobre a qual já havia lido, muito graças à S., que havia enveredado por aquele horror que era, para mim, as “Artes” (por que raio uns conseguem fazer com que um retrato se pareça com um retrato, sem qualquer esforço, e outros, depois de horas de suor, horas de concentração, horas de pormenor, lápis de carvão HB, 2B, mole, duro, médio, conseguem que um retrato se pareça com… uma avantesma??).
Já há muito havia elegido Barcelona como um destino a não esquecer.
No entanto, o tema que mais retive do relato do E. foi: a Fundação (relativamente recente) Tàpies. Foi o que mais me segurou, mas por contraste. Ele falava (com a sua voz enorme, enorme) de tudo de espectacular que tinha visto, mas, quando falou da Fundação, o seu tom mudou radicalmente: seus olhos saíam da beira da lareira-sala-cozinha lá de casa, viajavam uns milhares de quilómetros e era vê-lo em frente àquelas obras, modernas, sem significado plausível, uma espécie de gozo à sua cara, uma espécie de gozo para qualquer cara com meio palmo de cérebro que por lá passasse e entrasse.
- Umas calças de ganga velhas pespegadas numa tela?? Mas que raio? E a isto se chama Arte??
Muitos anos depois, a ansiada viagem, ainda com mais bagagem em cima.
Fomos lá, claro. Como não?
Não encontrei as calças de ganga e não percebi a maior parte.
Não retive, sequer.
Retive a cidade, o Gaudí (se bem que na Sagrada Família tive um ataque de vertigens e, apesar de me ter aventurado a subir no elevador lá acima, só consegui sentar-me num degrau, fechar os olhos e aguardar o R. para, rapidamente, voltar a descer o elevador para terra firme) e o Dali, mesmo à beira.
O que mais me marcou, porém, foi o museu Miró. Pela primeira vez usei uma daquelas coisas que pomos nos ouvidos, carregamos num número, sempre que haja referência a eles numa obra, e ouvimos o que alguém tem para nos dizer sobre a obra, a pessoa, a época, as histórias por detrás da tela. Saí de lá maravilhada, não só pela obra (que me causa empatia, pelo que não precisaria dos “auxiliares” para gostar), mas porque me fartei de ouvir sobre tudo o que a envolveria ou envolvera, o que me tocou de forma muito profunda e me fez olhar vezes sem conta para os traços, as cores, as espessuras, os quais me provocariam, “apenas”, empatia, gosto, e não, verdadeiramente, atenção.

Passando à(s) dobra(s).
Tudo isto me passou pela cabeça por causa de uma dedicatória. Demorei até algum tempo entre a leitura do título e o início do texto propriamente dito. Perdi-me. E não foi no livro.
Este livro ficou com algumas dobras. Mas não tive dúvida qual escolheria (embora tenha havido uma altura em que esteve ali taco-a-taco com um outro conto, mas que me recordou o incompreensível de David Lynch e, de incompreensíveis, já está o sacal cheio).
Este, para mim, ficou como a história por detrás do traço, neste caso, do graffiti. E, escusado será dizer, que também não lhe daria emprego numa empresa de gestão de expectativas… E, ainda, que morará em um qualquer cravo vermelho além-mar.


“Graffiti
Ao Antoni Tàpies

Tantas coisas que começam e talvez acabem como um jogo, suponho que te divertiu encontrar o desenho ao lado do teu, atribuíste-o a um acaso ou a um capricho e só à segunda vez te apercebeste de que era intencional, e então olhaste-o devagar, voltaste mesmo mais tarde para olhá-lo de novo, tomando as precauções de sempre: a rua no seu momento mais solitário, nenhum carro celular nas esquinas próximas, aproximar-se com indiferença e nunca olhar os graffiti de frente, mas desde o outro passeio ou em diagonal, fingindo interesse pela vidraça do lado e partindo de seguida.
O teu próprio jogo começara por aborrecimento, não era na verdade um protesto contra o estado de coisas na cidade, o recolher obrigatório, a proibição ameaçadora de colar cartazes ou de escrever nos muros. Simplesmente divertia-te fazer desenhos com giz colorido (não gostavas do termo graffiti, tão de crítico de arte) e de vez em quando ir vê-los e até com um pouco de sorte assistir à chegada do camião municipal e aos insultos inúteis dos empregados enquanto apagavam os desenhos. Pouco lhes importava que não fossem desenhos políticos, a proibição abarcava qualquer coisa, e se alguma se tivesse atrevido a desenhar uma casa ou um cão, também isso teriam apagado entre palavrões e ameaças. Na cidade, já mal se sabia de que lado estava verdadeiramente o medo: talvez por isso te divertisse controlar a tua vida e de quando em vez escolher o lugar e a hora propícios para fazer um desenho.
Nunca correras perigo porque sabias escolher bem, e no tempo que passava até que chegassem os camiões de limpeza abria-se para ti uma espécie de um espaço mais limpo onde quase cabia a esperança. Olhando de longe o teu desenho, podias ver as pessoas que lhe lançavam um olhar ao passar, obviamente ninguém se detinha, mas ninguém deixava de olhar o desenho, por vezes uma rápida composição abstracta a duas cores, um perfil de pássaro ou duas figuras entrelaçadas. Apenas uma vez escreveste uma frase, com giz negro: A mim também me dói. Não durou duas horas, e desta vez foi a própria polícia que a fez desaparecer. Depois disso, continuaste a fazer apenas desenhos.
Quando o outro apareceu ao lado do teu, quase tiveste medo, de repente o perigo tornava-se duplo, alguém se encorajava como tu a divertir-se à beira da prisão ou de qualquer coisa pior, e esse alguém, como se ainda fosse pouco, era uma mulher. Tu mesmo não podias prova-lo, havia qualquer coisa diferente e melhor que as provas mais rotundas: um traço, uma predilecção pelos gizes cálidos, uma aura. Talvez porque andasses sozinho, imaginaste-a por compensação; admiraste-a, tiveste medo por ela, esperaste que fosse última vez, quase te denunciaste quando ela voltou a desenhar ao lado de outro desenho teu, uma vontade de rir, de permanecer ali, diante dele, como se os polícias fossem cegos ou idiotas.
Principiou um tempo diferente, mais sigiloso, mais belo e ameaçador ao mesmo tempo. Descuidando o teu emprego, saías não importava em que momento com a esperança de surpreende-la, escolheste para os teus desenhos essas ruas que podias percorrer num só rápido itinerário; voltaste de madrugada, ao anoitecer, às três da manhã. Foi um tempo de contradição insuportável, a decepção de encontrar um novo desenho dela junto a algum dos teus e a rua vazia, e a de não encontrar nada e a rua ainda mais vazia. Certa noite, viste o seu primeiro desenho sozinho; fizera-o com gizes vermelhos e azuis numa porta de garagem, aproveitando a textura das madeiras carcomidas e as cabeças dos pregos. Era ela mais do que nunca o traço, as cores, mas sentiste além disso que aquele desenho funcionava como um pedido ou uma interrogação, uma maneira de chamar-te. Voltaste de madrugada, depois de as patrulhas baterem na sua surda drenagem as ruas, e no resto da porta desenhaste uma rápida paisagem com velas e quebra-mares; de não olhá-lo bem, dir-se-ia um jogo de linhas desordenadas, mas ela saberia olhá-lo. Nessa noite, escapaste por pouco a um par de polícias, no teu apartamento bebeste gin após gin e falaste com ela, disseste-lhe tudo o que te vinha à cabeça como outro desenho sonoro, outro porto com velas, imaginaste-a morena e silenciosa, escolheste-lhe lábios e seios, amaste-a um pouco.
Quase em seguida, ocorreu-te que ela procuraria uma resposta, que voltaria ao teu desenho como tu voltavas agora aos teus, e embora o perigo fosse cada vez maior depois dos atentados no mercado, atreveste-te a aproximar-te da garagem, a rondar a zona, a tomar intermináveis cervejas no café da esquina. Era absurdo, porque ela não se deteria depois de ver o teu desenho, qualquer das muitas mulheres que iam e vinham podiam ser ela. Ao amanhecer do segundo dia, escolheste um paredão cinzento e desenhaste um triângulo branco rodeado de manchas como folhas de carvalho; do mesmo café da esquina, podias ver o paredão (já tinham limpado a porta da garagem e uma patrulha voltava uma e outra vez, raivosa), ao anoitecer afastaste-te um pouco mas escolhendo diferentes pontos de mira, deslocando-te de um sítio para outro, comprando mínimas coisas nas lojas para não chamar demasiado a atenção. Já era noite cerrada quando ouviste a sirene e os projectores te varreram os olhos. Havia um confuso ajuntamento perto do paredão, correste contra toda a sensatez e só te ajudou a sorte de haver um carro dando a volta à esquina e travando ao ver o carro celular, o seu vulto protegeu-te e viste a luta, um cabelo negro puxado por mãos enluvadas, os pontapés e os gritos, a visão entrecortada de umas calças azuis antes de a atirarem para o carro e a levarem.
Muito depois (era horrível tremer assim, era horrível pensar que aquilo estava a acontecer por culpa do teu desenho no paredão cinzento), misturaste-te com outras pessoas e conseguiste ver um esboço em azul, os traços daquele laranja que era como o seu nome ou a sua boca, ela ali naquele desenho truncado que os polícias tinham mascarrado antes de levá-la; sobrara o suficiente para compreender que quisera responder ao teu triângulo com outra figura, um círculo ou talvez uma espiral, uma forma plena e bela, qualquer coisa como um sim ou um sempre ou um nunca.
Sabia-lo muito bem, sobrar-te-ia tempo para imaginar os detalhes sobre o que estaria a acontecer no quartel central; na cidade, tudo aquilo se revelava pouco a pouco, as pessoas estavam a par do destino dos prisioneiros, e se às vezes voltavam a ver um ou outro, teriam preferido não os ter visto e que tal como a maioria se tivessem perdido nesse silêncio que ninguém se atrevia a quebrar. Sabia-lo de sobra, essa noite de gin não te ajudaria mais do que a morder as mãos, a pisar os gizes coloridos antes de te perderes na bebedeira e no choro.
Sim, mas os dias passavam e já não sabias viver de outra maneira. Voltaste a abandonar o teu trabalho para andares às voltas pelas ruas, olhando furtivamente as paredes e as portas onde ela e tu tinham desenhado. Tudo limpo, tudo claro; nada, nem sequer uma flor desenhada pela inocência de um estudante da preparatória que rouba um giz na aula e não resiste ao prazer de usá-lo. Também tu não pudeste resistir, e um mês depois levantaste-te ao amanhecer e voltaste à rua da garagem. Não havia patrulhas, as paredes estavam perfeitamente limpas; um gato olhou-te cauteloso de uma portada quando tiraste os gizes e no mesmo lugar, ali onde ela deixara o seu desenho, encheste as madeiras com um grito verde, uma vermelha labareda de reconhecimento e de amor, envolveste o teu desenho com um ovóide que era também a tua boba e a sua e a esperança. Os passos na esquina lançaram-te num caminho almofadado, ao abrigo de uma pilha de caixas vazias; um bêbedo vacilante aproximou-se cantarolando, quis pontapear o gato e caiu de barriga para baixo junto ao desenho. Afastaste-te lentamente, já seguro, e com o primeiro raio de Sol dormiste como não tinhas dormido em muito tempo.
Nessa mesma manhã, olhaste de longe: não o tinham apagado ainda. Voltaste ao meio do dia: quase inconcebivelmente, continuava ali. A agitação nos subúrbios (tinhas escutado os noticiários) afastava as patrulhas urbanas da sua rotina; ao anoitecer, voltaste a vê-lo como tanta gente o vira ao longo do dia. Esperaste até às três da manhã para regressas, a rua estava vazia e negra. De longe, descobriste o outro desenho, só tu poderias tê-lo distinguido, tão pequeno em cima e à esquerda do teu. Aproximaste-te com um misto de sede e de horror, viste o ovóide laranja e as manchas violeta de onde parecia saltar uma cara tumefacta, um olho dependurado, uma boca esmagada a bofetadas. Eu sei, eu sei, mas que outra coisa teria podido desenhar-te? Que mensagem teria sentido agora? Tinha de encontrar uma forma de dizer-te adeus e de pedir-te ao mesmo tempo que continuasses. Tinha de deixar-te alguma coisa antes de voltar ao meu refúgio onde já não havia nenhum espelho, apenas um buraco para esconder-me até ao fim na mais completa escuridão, recordando tantas coisas e, às vezes, assim como imaginara a tua vida, imaginando que fazias outros desenhos, que saías à noite para fazer outros desenhos.”
 

in Gostamos tanto da Glenda, de Julio Cortázar