sexta-feira, 25 de abril de 2014

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Que dia é hoje? (é o título da louca) / A raposa d’O Principezinho (é o título da outra)


Cheguei a casa e fui logo tirá-lo da prateleira, em vez de me agarrar ao que tenho andado a ler nos últimos dias. Bom, para ser sincera, não foi bem um acto espontâneo, de momento; já vinha com ele na cabeça porque este texto já tinha começado a sua cavalgada, mesmo já em caderno, escrito no carro, logo após ter puxado o travão de mão depois de estacionar. Deixei só a chave na ignição e “Windowsill”, “No Cars Go” e “My Body is a Cage” nos ouvidos.

Vocês não sabem quando foi.
Vocês só sabem se eu o explicitar. Se eu quiser. E isso é muito poderoso… O que vocês conhecem é o

eu

(eu bem que já tentei tirar o , mas como sou bem naba nestas coisas, não consegui…)

e o

xxxxxx-feira, xx de Xxxxx de 2014

E, assim, deste, também não vão saber o que escrevo agora e o que já escrevi antes!
Ouvem a minha gargalhada maquiavélica?!
Nem sequer sabem o que significam expressões tão simples como o “agora” ou o “ontem” ou o “há bocado”!

Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ahhh!!!!

Bom, está na hora de me deixar (destas) loucuras e tentar escrever qualquer coisa com sentido (outra gargalhada, mas não maquiavélica: esta foi para dentro…).
Já respirei fundo…
Regressando, que já me estou a perder…

Uma das fortes razões por que me identifico tanto com a raposa d’O Principezinho é a sua total incapacidade para gerir expectativas…
Lá aquelas cenas do amigo e do criar laços (eu aqui confesso que recorro muito mais à versão em Inglês do que à em Português – to tame, pareceu-me sempre que tinha um som muito mais próximo do que sinto ao ler do que criar laços…), sinceramente Saint-Exupéry, perdoa-me, mas são muito pouco relevantes para o eu gostar tanto daquele capítulo. É verdade que o abuso que foi dado a estas palavras, também foi tanto que a conversa já acaba por enjoar.

Em qualquer lado, deparamo-nos com
 
canecas,
bloquinhos,
posts,
postais,
lancheiras,
screensavers,
copos,

a dizer:

“O essencial é invisível para os olhos.”;
“Ficas responsável para todo o sempre por aquilo que está preso a ti.”;
“Só conhecemos as coisas que prendemos a nós.”

Que enjoo…

(se souberem onde se venda uma capa flexível de telemóvel com a imagem da raposa, digam-me, sim?).

Façam uma pesquisa de frases para “amigos” ou para “amizade” e lá encontrarão toda uma panóplia de palavras dulcíssimas, certamente que muito verdadeiras, muito sentidas e muitas serão deste colossal hino, com raposas, ovelhas, rosas e principezinhos (não costumam aparecer serpentes, não percebo porquê…).


Recentemente, na passada 2ª feira (vocês não sabem quando foi, não… e saberem se foi, já é algo que deixo para cada um), um amigo disse-me algo em que não usou estas palavras, mas, se as puséssemos num robot tradutor de frases ambulante, sairia algo como:

“Pareces uma merda!”.

As palavras, que não foram estas, foram bem mais que estas (em quantidade) e subordinadas a um tema específico (em relação ao qual até podiam estar bem enganadas - do meu ponto de vista, claro), mas a brutidão foi ainda maior: o (re)conhecimento revelado num “pareces” contraposto a um ausente “és”, com um presente “não és” ficou-me bailando, como um testemunho da mais pura amizade.


Regressando…
Como estava a dizer – correndo o risco de chocar alguns – não são as palavras sobre a amizade o que mais me prende à raposa d’O Principezinho.
Agora... aquela absoluta incapacidade daquele bicho em reagir como um verdeiro ser humano face a uma expectativa que tinha… Não podia ter aproveitado para dar uma volta pelas rosas ou ter ido caçar uma galinha, mesmo que igual a qualquer outra galinha?! Então o bicho não podia ter tido mais calma? Menos agitação, menos inquietação? Tinha de se por a "arranjar o coração"? Isso é lá coisa que se faça? E ficar naquele estado por causa de um mísero atraso? Um mísero atraso, raios!

ges·tão
substantivo feminino
Gerência; administração.
(in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa)

Há-de haver quem seja bom a gerir recursos humanos, uma casa, uma organização (onde? onde?), condomínios, comunicação e há-de haver que consiga gerir bem expectativas (emocionais, era a palavra que ia escrever, mas parece-me redundante – se é expectativa, deve ser já emocional… deixa cá ver…

ex·pec·ta·ti·va
(francês expectative)
substantivo feminino
1. Acto ou efeito de expectar. = ESPERA
2. Esperança baseada em supostos direitos, probabilidades, pressupostos ou promessas (ex.: o livro superou as expectativas).
3. Acção ou atitude de esperar por algo ou por alguém, observando. = ESPERANÇA
(in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa)

Bem me parecia – se mete espera, esperança, observando e promessas, só pode ser emocional…).

Para além dos bons gestores, como referia, hão-de existir os medianos, os medíocres e os perfeitamente incapazes.
Se tivesse uma empresa de gestão de expectativas, nunca empregaria a raposa d’O Principezinho, isso vos digo.

Há outra coisa que me prende à raposa d’O Principezinho.
Ela é um bicho.
Age como um bicho.
Os bichos têm garras (ou similares) que põem cá para fora, reactivamente, com um propósito, e não conseguem pensar no que estão a fazer; alguns, como a raposa, também têm cauda que, umas vezes, abanam, outras escondem entre as pernas; os bichos também regressam.

 
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A raposa d’O Principezinho pode ser uma péssima gestora de expectativas, mas sempre me pareceu um excelente bicho.
(este é o fim da outra)

 “Se os caçadores fossem ao baile num dia qualquer, os dias eram todos iguais uns aos outros.”
(este é o fim da louca)

 

 

sábado, 19 de abril de 2014

some will fall and some will live


Não vale a pena ocultar.

A gente chora por razões tão parvas como as que nos fazem rir…

Têm um significado, não vou dizer que não, mas os significados ou o que as faz brotar feitas tolas, vão-se modificando, pelo que as ditas acabam por nos surpreender – atacam-nos pelas costas, ficam à espera, armadas em lobo, ou, melhor, em pulga: por pequenas, aparentemente insignificantes, mas incisivas e altamente presenciais.

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Quando tinha uns 17, 18 anos, não fui a Londres. Mas alguém, de mim próximo, foi.

No regresso, tinha na bagagem um CD. Capa escura (penso que preta), de onde sobressaía uma imagem de criança, uma face de menina, cabelo revolto, claro (ou seria uma imagem em preto e branco?...), olhar nenhures. Les Miserables, em título.

Não era prenda, pelo que o arrebatei durante largos meses (largos meses) – na altura, a cópia não era facilitada e aquele CD, por muito tempo, conheceu a tecla repeat do leitor Sony, primeiro no meu quarto da Rua de Dona Estefânia, depois na sala da minha ilha.

CD no leitor, aos berros – vantagens de viver num prédio de 8 fogos, praticamente todos desocupados ou com ocupação-de-fim-de-semana, onde apenas estávamos eu e aquela vizinha (aquela vizinha), já velha, mas que eu não olhava como diferente dos primórdios do conhecimento (desde sempre), meio surda, do apartamento ao lado – e o livro que acompanhava o CD entre as mãos, lendo, sentindo, cada palavra, entoando cada emoção, silenciando cada pausa, ovacionando cada vitória.

Por diversas vezes fingi que não ouvi:

- Onde anda o meu CD de Les Miserables? Sabes?

Claro que sabia. Eu e ele também…

E eu via as imagens que nunca vira, imaginava as cenas que nunca lera.

Lá me decidi a passá-lo para uma cassete, esse objecto tão absolutamente desconhecido nos dias de hoje, e anuí-me a devolver o CD e livro, até porque já as cantava de cor - letras, comoção e canhões -, entre um prato e um livro, entre uma sebenta e um puzzle.

Entretanto, graveio-o também para mim e para ela e para ele e para muitos e passou a acompanhar-me, não só desde a sala daquele 3º andar direito, como nas viagens para os carnavais, as passagens de ano, os fins-de-semana e as noites.

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Não muitos anos após, a Sony, que já não devia nada, morreu.

As cassetes foram-se amontoando em caixotes, sacos e gavetas; numa nova vida, adquirimos uma Pioneer super hi-fi, sem leitor de cassetes, mas com leitor de CD, DVD e dolby surround; carro novo, leitor de CD’s (naturalmente, já ninguém falava de cassetes), 3º andar direito longe, mas nunca esquecido. Tal, pausou o re-ouvir vezes sem conta aquela história, que nunca tinha visto, nunca tinha lido, não conhecia (…), mas via e sentia.

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Mantive em sonho ir a Londres só para ver que imagens se sobreporiam às que fui inventando nas palavras – revolução, amores encontrados, lutas eternas, amores desencontrados…

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Há uns pouquinhos anos atrás, novo carro novo. Mantém os CD’s (ainda não morreram e até já podemos lá por 5 de uma só vez!), mas abriu-se uma nova porta, para um novo mundo. Uma porta USB!

Foi-se construindo uma pen, especial, cheia, e, a certa altura:

- Encontrei! Já tens os teus miseráveis para veres enquanto vais para o trabalho!

Estranhei de início, devo confessar… Era uma outra versão. Mais completa – o equivalente a 2 inteiros CD’s – e parte do que ouvia era para mim desconhecido, não entrava no meu filme, nem eu conseguia entrar…

Finalmente, despertei para o botão skip, ali bem à vista, mas até à data não conhecido – ouvi um par ou mais de vezes a versão integral, por respeito, mas acabei por ir passando o desconhecido, o sem-imagem, deixando comigo, de novo aos berros, de novo só para mim, aquelas; qual tarde de estudo de álgebra ou física ou análise matemática, na minha ilha, ali ao lado, no 3º direito daquele prédio de 8 fogos.

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Lavando os dentes e utilizando a sanita, a propósito de algo:

eu: a mãe também vos vai dar uma coisa para levarem.
M: o que é, mamã?
eu: Oh Maria… É surpresa, não posso dizer…
M: Mas é o quê?
(quando quer, a Maria – todo eles, todos nós –é muito surda…)
eu, pensando “bolas… que surpresa?": é uma pen.
M: Que é isso?!...
eu: é um objecto que serve para guardar informação. Neste caso tem música. Vários CD’s.
M, que gosta sempre de saber tudo, tudo, tudo...: Mas quantos? Quais?
eu: Olha, é aquele que costumamos ouvir no carro. Por exemplo tem Tom Waits…
M: Tem Maria João?
 (tínhamos ouvido um e outro durante a tarde)
eu: Não, não tem Maria João, isso é um CD.
M: e Mercedes Sosa? Tem Mercedes Sosa?
eu: não, não tem Mercedes Sosa, mas tem Sílvio e Vampire Weekend e Arcade Fire e Andrew Bird…
M: Angry Bird?
eu, sorrindo: não, Maria, Andrew Bird e não Angry Bird… E Les Miserables
M: Les Miserables?
eu: Sim. É aquele musical que tem uma história que a mãe nunca leu (há-de ler, um dia) sobre um senhor que tem fome e rouba um pão e vai para a prisão por causa disso.
M: Não se pode roubar… Mas, se tivermos fome, podemos sempre pedir a alguém ou fazer aquelas habilidades com umas coisas e depois recebemos uma moeda em troca…
(Aqui bateu a dúvida de “o que é correcto e o que não é correcto a partir do momento que temos de educar?...")
eu: Pois, Maria, mas nem sempre é assim tão fácil e nunca homem nenhum devia ser preso por roubar um pão quando tem fome…
saiu-me, primeiro. E depois, cobarde!:
eu: e, de qualquer forma, eu acho que ele pretendia retribuir, mais tarde…
M: O que é retribuir?
eu, salva pela oportunidade de responder e completar: retribuir, neste caso, seria como devolver o que roubou. Mas, como não tinha como e tinha fome, eu acho que não ia conseguir. E, mesmo assim, não devia ter ido para a prisão. Entretanto, tudo isto se passou durante uma revolução.
M: Ah… Como a dos cravos!...
Eu, “salva”…: sim, como a dos cravos. Mas em França. Um dia a mãe há-de saber mais sobre esta história para te contar. E, agora, cama e dormir!

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Dei-lhes os beijinhos com o

“Do you hear the people sing
Singing the song of angry man
It is the music of the people
Who will not be slaves again.
When the beating of your hearts
Echoes the beating of the drums
There is a life about to start
When tomorrow comes!”

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Minha mãe perguntou se queria ver. Disse que sim.

A C., minha sobrinha que me acompanhou no ver, comentou:

- Nunca vi filme com alguém que soubesse tudo tão de cor!!!

(e sem nunca ter visto, digo eu…)

Foi tão estranho ver… as imagens que construí na cabeça há 20 anos; fiz e refiz, imaginei e fabriquei; revi muitas, percebi outras, limpei muito os olhos daquelas parvas, tão parvas, como as que nos fazem sorrir.

Voltei a decidir: não hei-de morrer sem vos ver em Londres (já lá fui, entretanto, mas… sold out) e sem ter ler, Victor Hugo.

Não é amanhã.

Amanhã vou mostrar à M. a pen. Fazê-la palpá-la. Como palpei cassetes. Uma coisa é uma coisa, um homem é um homem.

“Some will fall and some will live
Who will be strong and stand with me…
Somewhere beyond the barricade
Is there a world we long to live…”

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Et alia 7 - Austerlitz


Austerlitz é um homem.

Também é uma criança.

E descobrimos (tentamos descobrir) como é possível ser ambos sem nunca ter sido nenhum, completamente.

Isto foi o que eu li.

Numa parte.

 

Há mais de 20 anos, para aí há uns 23 anos, em pleno início de adolescência (sim, porque acho que existe uma fase prévia que não é carne nem é caos em que andamos a vaguear entre passarmos completamente para o lado da parva ou se deixamos um pouco de nós na parte grande para, pelo menos, repescarmos quando necessário), estive com o meu pai, sua mulher, R., e uma amiga, M., na república Checa. Estivemos em Praga e seguimos depois de carro até à Alemanha, já não me recordo bem para que cidade, penso que era Dresden.

Da viagem, de carro, recordo aquela estrada povoada de camiões e jovens, muito jovens, na berma da estrada.

Das pausas, recordo o restaurante em que parámos e almoçámos e em que tivemos de desenhar para nos fazermos entender em relação ao pedido – nunca estive em locais muito exóticos em termos linguísticos; na bagagem, entre todos, pelo menos arranhávamos umas 7 línguas de origens diferentes, mas tal de nada nos serviu para a comunicação verbal ou lida, pelo que passámos para a abordagem papel, caneta, capacidade de desenho e pouca ou nenhuma preocupação com o que viesse da cozinha (de que já não me lembro, de facto; mas tenho ideia de termos desenhado um peixe e de termos comido uma carne, certamente com natas azedas e knedles – já não me lembro como se escreve, mas estava presente em todos os pratos que lá comemos: dumplings).

Das pausas, recordo Terezín.

Recordo ouvir o meu pai e a R., holandesa, falarem um pouco sobre Terezín, do que havia sido. Com alguma tensão, até por algo que se tinha passado de véspera, ao jantar, em Praga, e fruto do nosso, meu e da M., pedestal de passo para o alto do abismo da adolescência, essa “coisa” que nos justifica tanta coisa, sem qualquer justificação, mas com todas as fundamentações.

Recordo a tabuleta de entrada.

Recordo percorrer as ruas e ver tudo deserto.

Recordo a cor das paredes e a linearidade.

Recordo tentar ver, mas sentir tudo muito distante, sem alcance possível de nenhuma parte da minha cabeça.

Recordo que fiquei impressionada, muito silêncio, culminado num bac de fecho de porta de carro para seguir viagem, antes que a noite chegasse.

 

Eu acho que devia ser obrigatório estudar, ler, sentir sobre os locais que vamos visitar ou que vamos dar a visitar aos nossos filhos, amigos, companheiros de viagem. Aprendi tal 23 anos tarde demais, porque, pela primeira vez: li Terezín; vi Terezín e tive de fechar os olhos e a alma, de vergonha; senti algo, que não chegou a ser Terezín, porque muito distante do meu quotidiano tranquilo e despreocupado. Desejei voltar a percorrer, no mesmo silêncio, aquelas ruas. Tenho a certeza de que teria sido diferente e que teria olhado aquelas pessoas que, não entendiam o Quê se passava, nem sequer passaram à questão do Porquê se passava, porque, absolutamente impossível de responder. E, mesmo assim, ficaria a cosmos de distância delas.

Mas não ouviria nenhum bac de fecho de porta de carro de partida.

 

Vamos a dobras (onde não cabem Terezín, ou o que mais me marcou em Austerlitz, por razões mais ou menos explicadas num anterior et alia – para quem tenha entendido…):

 
“É a fenómenos destes, absolutamente irreais, disse Alphonso, uma súbita incursão do irreal no mundo real, determinados efeitos de luz na paisagem que temos pela frente ou nos olhos de uma pessoa amada, que se inflamam os nossos sentimentos mais profundos ou pelo menos os que tomamos como tal.”

 
“O tempo, disse Austerlitz na sala de astronomia de Greenwich, é de longe a mais artificial das nossas invenções e liga-lo aos planetas que giram em torno dos seus eixos não é menos arbitrário do que, digamos, um cálculo baseado no crescimento das árvores ou no tempo que uma pedra calcária leva a desintegrar-se, à parte o facto de o dia solar pelo qual nos guiamos não oferecer medidas exactas, pelo que, para obtermos a contagem do tempo, temos que inventar um sol médio imaginário com um movimento de velocidade invariável e cuja órbita não se incline para o equador. Se Newton pensasse, disse Austerlitz, e apontou pela janela para a curva que a água desenha ao rodear a ilha dos Cães com a última luz do dia, se Newton realmente pensou que o tempo é uma corrente como a do Tamisa, então onde é que fica a nascente do tempo e a que mar vai ele no fim desaguar? Todos os rios, como sabemos, têm que ter margens dos ambos os lados. Assim sendo, onde estão as margens do tempo? Quais seriam as suas qualidades específicas, correspondentes talvez à da água que é fluida, algo pesada e transparente? Em que é que as coisas mergulhadas no tempo diferem das que ele não afecta? Qual o significado de mostrarmos as horas de luz e as de escuridão no mesmo círculo? Porque é que o tempo de um lugar fica eternamente parado e se esfuma e num outro se precipita? Não se poderá afirmar, disse Austerlitz, que o tempo ao longo dos séculos e dos milénios tem sido assíncrono? Afinal, não foi assim há muito tempo que ele se expandiu. E não tem sido a vida das pessoas em muitas partes do mundo até hoje regida menos pelo tempo do que pelas condições atmosféricas, logo, por uma grandeza não quantificável que desconhece a regularidade linear, que não segue sempre em frente, antes se move em turbilhão, que é marcada por estagnações e surtos, recorre sob formas sempre diferentes e evolui para não se sabe que direcção? O estar-fora-do-tempo, disse Austerlitz, que ainda há pouco vigorava nas regiões atrasadas e esquecidas do nosso país como nos continentes por descobrir além-mar, continua a vigorar mesmo numa metrópole intemporal como Londres. Os mortos estão fora do tempo, os moribundos e todos os doentes, em casa ou nos hospitais, e não apenas estes, basta um tanto de infelicidade pessoal para nos separar do passado e do futuro. Na verdade, disse Austerlitz, nunca possuí qualquer relógio, de parede ou despertador, de bolso e muito menos de pulso. Os relógios sempre me deram vontade de rir, coisa basicamente mentirosa, talvez porque sempre resisti ao poder do tempo graças a um impulso interior que eu próprio não entendo muito bem, sempre me fechei à chamada actualidade, na esperança, penso eu hoje, disse Austerlitz, de que o tempo não passe, não seja passado, de poder ir atrás dele, de encontrar à chegada tudo como dantes, ou, melhor dizendo, de descobrir que todos os momentos to tempo existiram simultaneamente, caso em que nada do que a História conta seria verdade, os acontecimentos não aconteceram, estão à espera de acontecer no momento em que pensamos neles, embora, naturalmente, a perspectiva pouco animadora de eterna infelicidade e interminável dor fique assim em aberto.”

 

in Austerlitz, W. G. Sebald

 

Com a verdade os engano...


O segredo de estar com mais 11 quilos que há um ano e ouvir toda a gente dizer “Estás mais magra!”?
 
É começar por engordar 16 quilos…

domingo, 13 de abril de 2014

Bagagem que somos. Ou não?


Esta semana, jantei com um amigo que já não via há mais de muitos anos; tantos que não conseguimos, sequer concretizar. Muitos.

É comum ouvir-se: “estive com este ou com esta e foi como se não nos víssemos desde ontem…”

E é comum dizer-se, também.

Menos comum, para mim, pelo menos, é nem sequer, em momento nenhum, questionarmos isso. Ou seja, objectivando: uma coisa é sentirmos alguma ansiedade prévia a algum reencontro de há anos e, depois de jantar, constatarmos que foi como se nos tivéssemos visto ontem; outra coisa é não sentirmos sequer ansiedade, focalizarmo-nos na vontade de re-estar, porque sabemos que será como se nos tivéssemos visto ontem. E, depois, estarmos como se não nos víssemos há 10 ou 15 anos (lá estou eu a complicar outra vez... nada a fazer…).

É assim uma sensação de:

da última vez que nos despedimos, poderias ter aparecido para jantar lá em casa no dia seguinte, ou no mês seguinte, ou no ano seguinte, mas, afinal, vieste na década seguinte. Nem sei se no milénio seguinte… Mas podia não ter sido.

 

Coloca-se-me aqui a questão – que foi um dos temas do jantar – que tal acontece porque somos as mesmas pessoas. Assim o disse ele…

 

Ora, um outro tema que discutimos – digo discutimos porque eu, pessoalmente, ainda não concluí o mesmo que ele e tenho até sérias dificuldades em ser tão peremptória – foi o de que somos exclusivamente a nossa bagagem. Tudo nós é adquirido…

 

Eu confesso que é um tema que me causa alguma controvérsia interior, mas não deixo de sorrir ao pensar que:

- se somos as mesmas pessoas de há 10 ou 15 anos atrás; e

- se somos exclusivamente a nossa bagagem.

como raio conseguimos estar tantas horas falando de bagagem que se sente e vê intensa para nós próprios e que, afinal, nos transforma em… os mesmos?
Ou será que não?

Objectivando, em forma de coração

Escreveram-me, recentemente: “Não é fácil entrar nessa cabeça…”.
Pois eu compreendo e muito bem. Se até eu faço exercícios exigentes para entrar nela, e muitas vezes sem sucesso, imagino os outros…
Claro que não foi a 1ª vez que, de uma forma ou de outra, me atiraram tal constatação… E não tenho grande problema com isso, não fosse quando estou absolutamente convicta de que estou a ser completamente linear, simples e objectiva e do outro lado só vêem curvas, complexidade e confusão. Fica o caso ainda mais estranho, quando do outro lado se lê, objectivamente, outra coisa qualquer e não aquela, objectiva, que escrevi. Ou como a julgava…

Também recentemente (menos recentemente) me disseram que escrever num blogue visa os outros lerem. Neste caso, lerem-me. Ao contrário do que eu afirmara, minutos antes, que tinha um blogue para eu me escrever, sem dar peso à leitura dos outros.
Pois claro que estava redondamente enganada e ele – aquele de quem saíram estas, mais coisa menos coisa, palavras – estava cobertíssimo de razão.

Mais recentemente ainda (está ainda quente), apercebi-me, primeiro numa conversa e depois lançando mesmo desafios específicos, que um dos textos que escrevi - o qual, a meu ver, tinha uma mensagem subjacente, absolutamente objectiva – estava sendo lido com enfoque para outra mensagem, pouco ou nada relevante (a meu ver), apesar de presente nas palavras. Ainda aguardo umas reacções… Veremos…

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Objectivando:

Facto:
durante a semana passada passei por uma diarreia, constipação com ranho, dores fortes nas costas e, finalmente, o início do período.

Facto:
os factos escritos no ponto imediatamente anterior foram apenas pontos de vida. Usei e abusei deles, mas apenas como meio de transporte.

Facto:
o que foi relevante, significativo mais que tudo, foi o que se passou no meu cérebro e no resto do meu corpo (possivelmente como consequência do cérebro), em forma de assalto, mesmo que meio soluçando, a partir daquele instante - feito ponto, mas lançado para linha -, na 5ª feira à noite, depois de ponderar uma resposta espessa a um ocorrido de véspera, fumando um cigarro na mesa da cozinha, em que olhei para a minha mão e dei por mim completamente absorvida por aquela imagem, perfeita, com que me deparei na falanginha do indicador esquerdo. Num repente, vi só um coração, que não era um coração, porque era o coração, o meu coração, pois fazia parte de mim, do meu corpo, estava colado e não saía de mim. De imediato, a minha cabeça saiu disparada para todos os lados – perguntei-me como era possível, assim tão pequenino, mas com ar tão vivo, tão simétrico, tão colado a mim; vi-o seco e caído e logo logo choveram as palavras de Manuel Lopes naquela caligrafia que já não existe; vi-o pisado e levado pelo vento; vi-o livre e depois preso de novo. Questionei-me à boa maneira ritesca – complicada, voando em todas as direcções, excitada, sonhadora, nostálgica, futuro, passado, presente enovelados. Enfim: sacal.

É nesses momentos que faço clic. Ou clics. E entro numa euforia  em forma de espiral, mas que não cai, sobe, sobe, vivendo entre parêntesis para o exterior, à espera do tempo em que me sento, puxo do meu caderno e despejo o turbilhão.

Tenho de confessar que tive de reescrever quase na íntegra o “Que importa?” (na altura ainda intitulado) que saiu primeiro.
E também que há casos (muitos) em que o tempo de despejo se interrompe, perde-se, a excitação dá lugar à interrogação e às reticências e ficam emoções incompletas à espera de qualquer coisa  que ainda não sei explicar bem. Sacal, certamente. Em jeito de ferida, por vezes.

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Para este, que pretendo objectivo, só lhe falta um fim.

Deixa lá teu coração ser levado pelo vento… sim? Não há-de custar assim tanto…

Facto:
este chega, assim, ao fim. Objectivado, em forma de coração.

terça-feira, 8 de abril de 2014

A visão (de hoje) de vida

A vida é uma frase pontuada de parêntesis.
Podemos abrir travessões no meio de parêntesis e isso torna a frase mais complicada. Para quem a está a ler. Do lado de lá dos parêntesis. Do meio da frase.
Parêntesis no meio de parêntesis cheira a expressão e pertence ao mundo dos números: estabelece prioridades; não pertence a esta frase.
Portanto,
nada como os ir fechando, tão possível cheios de exclamações e interrogações e, até, de reticências, para podermos abrir outros.
E continuar a frase.
Sem ponto final, visível a nós.
Só por quem (nos) lê.

O que ela diz...

... e eu ouço e tento não intervir demasiado...
 
M: Mãe, eu acho que Lisboa é muito bonita...
eu: ... pois é, Maria...
Estranhei a afirmação assim, ali, no carro, em plena Rua de Dona Estefânia (que, não sendo feia, também não enche o olho), chovendo a potes e com pressa de chegar a casa depois de umas compras rápidas no supermercado, nesta Primavera armada em tímida...
M: E as pessoas. As pessoas discutem muito, mas depois fica tudo bem.
(Bolas! Apanhou-me?)
M: Mãe, tu sabes por que é que eu estou a dizer estas coisas?
eu: não, Maria, não sei...
M: sabes. É que eu vi ali uma coisa que não sabia o que era e eu acho que ela foi posta ali por alguém só porque era bonita e para nós vermos...
 
 
(bem mais tarde, dia seguinte, julgo, questionei-a sobre o que era essa coisa bonita. Ela respondeu que não sabia, por isso é que era uma coisa. Mas que tinha muitas cores. Portanto, bonita... Claro.)

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Que importa?

Assim que o vi, nos seus escassos 2 ou 3 mm por 2 ou 3 mm, conheci-o.
E, finalmente, percebi a semana.

Que não foi fácil para mim, fisicamente, mas ainda mais difícil terá sido para ele – espremer-se ao ponto de passar a escassos por cento do seu peso e volume normais, só para se des-absorver por mim, e eu o ver, o conhecer.
Como tivesse dúvidas do que vira na 5ª à noite (não tinha, mas há lá melhor teste que questionar crianças sobre o que se vê e crê?...), na 6ª ao jantar mostrei-lhes. A resposta foi unânime e imediata.
E:
eu: E agora? Que vai acontecer?
M: Vai secar e transformar-se em crosta.
eu: E depois?
J: Depois? Depois, cai.
Como folha de árvore…

Olhei para trás para ver se precisava quando começara o parto. Identifiquei logo a 2ª feira: de forma sólido-líquida, revolvendo-se, fazendo barulho intestinos abaixo, intermitente nas tentativas, mas determinado nos sucessos.

Na 3ª feira – sei agora que não conseguira de véspera (pelo menos a 100%), fosse pela distância, fosse por ter enfiado no bucho uma banana e coca-cola e pouco mais – optou por outra via. Mais aérea, mas ainda com forte componente líquida, em aspersão nos atchins, em escorrendo no muco amarelecido… Dia inteiro nisto, um martírio para a natureza, em gasto de papel… mas parece que também não foi dessa…

No dia seguinte, resolveu ser menos óbvio… deixou-me tranquila no acordar, no ver se seria nesse dia que deixava de chover, ainda refasteladinha dentro dos lençóis e edredon (e até com meias, o que é muito muito raro), e foi só quando me precipitava para a posição erecta que ele usou de todos os seus poderes, chicoteou-me forte nas cruzes, lá bem em baixo junto à tentativa de escapatória de 2ª feira, de que resultou um
- f…-se!!
e meus olhos se inundaram de água e sal (o mesmo em quase tudo da preta armada em Natálio do outro dia), por onde, imagino eu agora, ele se imaginou escorregando, qual infante em parque aquático rumo a… (rumo a, não digo agora, fica para mais daqui a umas linhas.).
Ainda por cima, em dia de auditoria em fase de visita pelas mais distantes (em lonjura e em degraus) áreas técnicas do aeroporto, já para não falar de ser dia de a ir buscar ao ballet e de ela vir a correr, como faz sempre ou quase, para se precipitar em vôo no meu colo:
- Maria, por favor, hoje não pode ser… - exclamei, curvada, já com os olhos a dar de si – De todas as vezes que a mãe se vira para a esquerda ou para a direita ou para baixo, sente chicotadas tão fortes nas costas que até chora… Salta para o Nuno, sim?
(é mesmo bom ter um amigo para quem se possa chutar um colo de filho…)

Desistiu da fronte na 5ª feira e resolveu ir espreitar lá abaixo, de novo. Desta vez, há-de ter pensado, hei-de me misturar com fluido da minha cor! A preferida dela! Escarlate; cor de quarto, cor de clube, cor de fogo que arde – visível ou invisível -, cor de sangue!!!
- Raios partam, algodão prensado entupidor!!!,
terá descoberto…

Mas, o que é um facto, é que lá há-de ter conseguido. Porque o encontrei, já noite escura, distraída, pensando em ontem, sentada junto à janela da cozinha, mesmo quando já pensava em me deitar… - “pensando em ontem” é literal, já que acabara de me debater em resposta a mal-entendido de véspera, apesar de já mais pacificada, incluindo com o corpo…
Não sei se se escapuliu todo de uma vez ou se veio aos pedacinhos, mas era inequívoco que conseguira. Ele deve saber também que mais facilmente miro meu indicador que meu espelho, pelo que se foi recompondo, ganhando raízes, em plena falanginha do indicador esquerdo:
 


 
 
Vêem-no? Reconhecem-no?
Sim?

Há-de secar e cair…

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“Que importa ser pelos pés pisada
E pelos ventos levada
Se é só depois de tombada
Que a folha tem liberdade?” *

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Hoje.
Hoje é Domingo e ainda cá está. Tenho-o hidratado todos os dias, várias vezes ao dia. Há uma mescla de vontade e de temor na sua libertação… Mas sei que o dia há-de chegar… Não conheci ainda crosta que tivesse resistido a tombar…

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(asterisco para quem queira saber:
Quando era pequena, sempre que abria aquela edição velhinha de “Poesias Completas” de António Gedeão, logo na 1ª página do livro, escrito a lápis na caligrafia pertencente àquela avó, era o que lia. Com um “poema de Manuel Lopes”, também a lápis, escrito logo de seguida, para nunca (nunca? disparate!) mais esquecer.
Fim de asterisco. E ponto. Inicial.)