Não vale a pena ocultar.
A gente chora por razões tão parvas como as que nos fazem rir…
Têm um significado, não vou dizer que não, mas os significados ou o que as
faz brotar feitas tolas, vão-se modificando, pelo que as ditas acabam por nos
surpreender – atacam-nos pelas costas, ficam à espera, armadas em lobo, ou,
melhor, em pulga: por pequenas, aparentemente insignificantes, mas incisivas e
altamente presenciais.
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Quando tinha uns 17, 18 anos, não fui a Londres. Mas alguém, de mim
próximo, foi.
No regresso, tinha na bagagem um CD. Capa escura (penso que preta), de onde
sobressaía uma imagem de criança, uma face de menina, cabelo revolto, claro (ou
seria uma imagem em preto e branco?...), olhar nenhures. Les Miserables, em título.
Não era prenda, pelo que o arrebatei durante largos meses (largos meses) –
na altura, a cópia não era facilitada e aquele CD, por muito tempo, conheceu a
tecla repeat do leitor Sony, primeiro
no meu quarto da Rua de Dona Estefânia, depois na sala da minha ilha.
CD no leitor, aos berros – vantagens de viver num prédio de 8 fogos,
praticamente todos desocupados ou com ocupação-de-fim-de-semana, onde apenas
estávamos eu e aquela vizinha (aquela
vizinha), já velha, mas que eu não olhava como diferente dos primórdios do
conhecimento (desde sempre), meio surda, do apartamento ao lado – e o livro que
acompanhava o CD entre as mãos, lendo, sentindo, cada palavra, entoando cada
emoção, silenciando cada pausa, ovacionando cada vitória.
Por diversas vezes fingi que não ouvi:
- Onde anda o meu CD de Les
Miserables? Sabes?
Claro que sabia. Eu e ele também…
E eu via as imagens que nunca vira, imaginava as cenas que nunca lera.
Lá me decidi a passá-lo para uma cassete, esse objecto tão absolutamente
desconhecido nos dias de hoje, e anuí-me a devolver o CD e livro, até porque
já as cantava de cor - letras, comoção e canhões -, entre um prato e um livro,
entre uma sebenta e um puzzle.
Entretanto, graveio-o também para mim e para ela e para ele e para
muitos e passou a acompanhar-me, não só desde a sala daquele 3º andar direito,
como nas viagens para os carnavais, as passagens de ano, os fins-de-semana e as
noites.
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Não muitos anos após, a Sony, que já não devia nada, morreu.
As cassetes foram-se amontoando em caixotes, sacos e gavetas; numa nova
vida, adquirimos uma Pioneer super hi-fi, sem leitor de cassetes, mas com leitor
de CD, DVD e dolby surround; carro
novo, leitor de CD’s (naturalmente, já ninguém falava de cassetes), 3º andar
direito longe, mas nunca esquecido. Tal, pausou o re-ouvir vezes sem conta
aquela história, que nunca tinha visto, nunca tinha lido, não conhecia (…), mas
via e sentia.
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Mantive em sonho ir a Londres só para ver que imagens se sobreporiam às que
fui inventando nas palavras – revolução, amores encontrados, lutas eternas,
amores desencontrados…
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Há uns pouquinhos anos atrás, novo carro novo. Mantém os CD’s (ainda não
morreram e até já podemos lá por 5 de uma só vez!), mas abriu-se uma nova
porta, para um novo mundo. Uma porta USB!
Foi-se construindo uma pen,
especial, cheia, e, a certa altura:
- Encontrei! Já tens os teus miseráveis para veres enquanto vais para o
trabalho!
Estranhei de início, devo confessar… Era uma outra versão. Mais completa –
o equivalente a 2 inteiros CD’s – e parte do que ouvia era para mim
desconhecido, não entrava no meu filme, nem eu conseguia entrar…
Finalmente, despertei para o botão skip,
ali bem à vista, mas até à data não conhecido – ouvi um par ou mais de vezes a
versão integral, por respeito, mas
acabei por ir passando o desconhecido, o sem-imagem, deixando comigo, de novo
aos berros, de novo só para mim, aquelas; qual tarde de estudo de álgebra ou
física ou análise matemática, na minha ilha, ali ao lado, no 3º direito daquele
prédio de 8 fogos.
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Lavando os dentes e utilizando a sanita, a propósito de algo:
eu: a mãe também vos vai dar uma coisa para levarem.
M: o que é, mamã?
eu: Oh Maria… É surpresa, não posso dizer…
M: Mas é o quê?
(quando quer, a Maria – todo eles, todos nós –é muito surda…)
eu, pensando “bolas… que surpresa?": é uma pen.
M: Que é isso?!...
eu: é um objecto que serve para guardar informação. Neste caso tem música.
Vários CD’s.
M, que gosta sempre de saber tudo, tudo, tudo...: Mas quantos? Quais?
eu: Olha, é aquele que costumamos ouvir no carro. Por exemplo tem Tom
Waits…
M: Tem Maria João?
(tínhamos ouvido um e outro durante a tarde)
eu: Não, não tem Maria João, isso é um CD.
M: e Mercedes Sosa? Tem Mercedes Sosa?
eu: não, não tem Mercedes Sosa, mas tem Sílvio e Vampire Weekend e Arcade
Fire e Andrew Bird…
M: Angry Bird?
eu, sorrindo: não, Maria, Andrew Bird e não Angry Bird… E Les Miserables…
M: Les Miserables?
eu: Sim. É aquele musical que tem uma história que a mãe nunca leu (há-de
ler, um dia) sobre um senhor que tem fome e rouba um pão e vai para a prisão
por causa disso.
M: Não se pode roubar… Mas, se tivermos fome, podemos sempre pedir a alguém
ou fazer aquelas habilidades com umas coisas e depois recebemos uma moeda em
troca…
(Aqui bateu a dúvida de “o que é correcto e o que não é correcto a partir
do momento que temos de educar?...")
eu: Pois, Maria, mas nem sempre é assim tão fácil e nunca homem nenhum devia
ser preso por roubar um pão quando tem fome…
saiu-me, primeiro. E depois, cobarde!:
eu: e, de qualquer forma, eu acho que ele pretendia retribuir, mais tarde…
M: O que é retribuir?
eu, salva pela oportunidade de responder e completar: retribuir, neste
caso, seria como devolver o que roubou. Mas, como não tinha como e tinha fome,
eu acho que não ia conseguir. E, mesmo assim, não devia ter ido para a prisão.
Entretanto, tudo isto se passou durante uma revolução.
M: Ah… Como a dos cravos!...
Eu, “salva”…: sim, como a dos cravos. Mas em França. Um dia a mãe há-de
saber mais sobre esta história para te contar. E, agora, cama e dormir!
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Dei-lhes os beijinhos com o
“Do you hear the
people sing
Singing the song
of angry man
It is the music
of the people
Who will not be
slaves again.
When the beating
of your hearts
Echoes the beating
of the drums
There is a life
about to start
When tomorrow comes!”
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Minha mãe perguntou se queria ver. Disse que sim.
A C., minha sobrinha que me acompanhou no ver, comentou:
- Nunca vi filme com alguém que soubesse tudo tão de cor!!!
(e sem nunca ter visto, digo eu…)
Foi tão estranho ver… as imagens que construí na cabeça há 20 anos; fiz e
refiz, imaginei e fabriquei; revi muitas, percebi outras, limpei muito os olhos
daquelas parvas, tão parvas, como as que nos fazem sorrir.
Voltei a decidir: não hei-de morrer sem vos ver em Londres (já lá fui,
entretanto, mas… sold out) e sem ter ler, Victor Hugo.
Não é amanhã.
Amanhã vou mostrar à M. a pen.
Fazê-la palpá-la. Como palpei cassetes. Uma coisa é uma coisa, um homem é um
homem.
“Some will fall
and some will live
Who will be
strong and stand with me…
Somewhere beyond
the barricade
Is there a world
we long to live…”