“Uma grande parte de mim é criança. Eu diria que para aí uma perna inteira,
de virilha a tornozelo; pé, por alguma razão, sentindo-se excluído.”,
dei por mim pensando em tal, enquanto imaginava necessidade de me descrever
perante pergunta que imaginei também.
Não saía disto. Questionava-me sobre “como descrever-me” e não saía da
perna. Tentei passar para a direita, porque, de alguma forma, associei a perna esquerda
à descrição de mim – coisa mais estranha, com franqueza; pensar em ter de me
descrever e só me sair isto: perna esquerda feita criança; obriguei-me a olhar
a outra e pensar “Se uma é criança, esta é o quê? Tem de ser outra coisa
qualquer, bolas! Não me posso descrever apenas com uma perna!” -, mas minha
cabeça não saía daquela. Eu bem que tentei forçá-la a interpretar outras partes
do corpo, mais internas, mais sentidas, mais associadas ao descrever de nós
próprios… Sem qualquer sucesso... Não havia maneira de a tipa (que é muito
teimosa) se dirigir à interpretação do coração, dos olhos ou cérebro. De cada
vez que a forçava, lá começava ela a mirar joelho, coxa ou tíbia esquerdos,
feita íman, hipnotizada.
Eu também desisto. E como tendo a dar muita importância aos desvaneios da minha
mente (isto só podia ser um devaneio…), propus-me tentar entendê-la:
“Criança, como? Infantil?”
Não, claro que não! Como raio pode mulher de já não tenra idade e com
algumas responsabilidades, dar-se ao luxo de ter uma perna inteirinha de infantilidade?
E logo tu…
(Este, “logo tu” deu-me alguma esperança de estar a falar com alguém que
tinha conhecimento de causa…)
“Criança, como? Risonha e brincalhona?”
Disparate! Tu só sabes o que é ser risonha e brincalhona desde que te
tornaste “crescida” e, maioritariamente, é-lo ironicamente, em defesa, e as crianças
demoram anos até aprenderem a usar a ironia. Tantos, que deixam de ser
crianças.
“Criança, como? Assimiladora?”
São grandes assimiladores. Mas é característica que se pode manter até
sempre.
“Criança, como, cabeça? Diz-me lá. Sinto que esta tua teimosia tem algo por
trás. E eu tenho coxas grossas. É muita criança que estás a por dentro de mim.
Por que raio, ao tentares descrever-me, te vidras tanto em ser-me criança? O
que faltou, para não conseguires matar esse tempo de mim ou, pelo menos,
reduzi-lo a unha de dedo mindinho?”
Não sabes? Parece-me tão óbvio…
“Mas eu já sou tão crescida… Toda uma perna?...”
Imagina que tens necessidades. Básicas. Imagina que tens sede. Imagina que
não há água que chegue a ti. Que acontecerá?
“Continuarei a ter sede. Poderei, até, morrer dela.”
Imagina que, depois de morta de sede, te oferecem um copo de água…
“Já estarei morta. Mas, como de sede, sorverei cada gota. Assimilando,
rindo, brincando com elas; infantilmente, porque estarei crendo que não será
copo, mas sim fonte.”
Que depois seca.
“Seca?”
Sim. Será copo. Não fonte.
“…”
…
“Não quero. Quero fonte de água.”
Não há.
“Não?”
Não houve. Lamento.
“Isso significa que terei sempre sede?”
Até que encontres oceano que te dê de beber.
“E que sede senti eu em criança?”
Ora!!! Mas era só o que mais faltava!!! Terei de dizer-te tudo, chiça?
(Digo… bolas!)
“Bolas! é para os putos…”
E não só…
Que sede sentiste, em criança?
“Tantas.”
Que sede sentiste tu, em criança?
“Tanta… Não havia rio que se lhe equiparasse…”
Que sede sentiste?
“És incisiva, tu!”
Muito. QUAL A TUA SEDE DE CRIANÇA?
"Não quero e não vou dizer. Também tenho o meu orgulho e pontos de timidez.
Aceitas?"
Aceito. Em tamanho de perna com coxas grossas.
"Que alívio. Já me sentia entre espada e muro.
Já que aqui chegámos em conversa… dás-me uma festa? Pode ser na
cabeça… ou pela perna esquerda. Acho até que, se te dirigires a pé, atingirás perna esquerda. Eu preciso. Dás?"
A meu jeito. Confluente. Ok?
Ok.