Conheci o Mateus num jogo de sueca.
Tinha interrompido por instantes a conversa com o Américo. O Américo
desejava discutir todos os temas do Mundo em apenas uma conversa e atropelava
Cosmos, Física, Matemática em série, Geometria, Natureza, simetria, Química,
livros, prémios Nobel, más traduções, boas publicações, poesia, poesia de Amor,
camões (nesse repente, não se lembrava de um dos seus sonetos preferidos, mas desfiou
3, ali, em pé, junto à estante dos livros), poesia de amor castelhana,
fotocópias, “por que razão se há-de ter uma grande biblioteca se não tivermos
nela livros por ler?”, separação, a rádio (de repente, não se lembra do fio
condutos da conversa, pára um pouco, olha para dentro e encontra-o), música,
debates (agora não tem televisão, mas quando tinha gostava muito do prós e
contras), uma entrevista a Luis Sepúlveda, os números da crise (de repente
lembrava-se de todos os fios e das inexactidões dos números, dos ditos, dos da
boca para fora), o socialismo, as mentiras, História, histórias do Mundo,
divergências. Tudo numa só conversa, rápida, entre um acocorar-se à procura de
um livro e uma ida à casa de banho.
Puxaram-me por um braço:
- a menina joga?
À minha esquerda, o Luma: barba crescida, óculos de massa e olhos atentos a
todas as mãos.
- Não devia ter feito isto, pois não? – pergunta-me logo após lançar o Ás
de Espadas quando na jogada anterior havia trunfado a manilha do mesmo naipe.
- Pois não – respondi com um sorriso.
Luis à minha direita.
- E tu? És de onde?
Barba feita, pele clara, contrastando, puxador de conversa, só se apercebeu
da denúncia do parceiro, quando já recolhia a 2ª mão.
Mateus estava á minha frente. Camisola velha e escura de lã, barba cortada,
poucos, mas alguns, dentes:
- Não te preocupes, Rita. Jogas comigo: está tudo ganho.
3-1 para os outros. Mãos abertas sobre a mesa, fecha os olhos, inclina a
cabeça quase roçando a mesa, respira fundo e:
- então aqui vai…
Incorre em texto falado, chorado, entaramelado, sentido, levantando a
cabeça para verificar se estão todos s olhá-lo, semicerrando, de novo, os
olhos, esfregando mãos e culminando com som forte, grave e queda brusca das
mãos, de novo, sobre a mesa.
- Ah, poeta! Com essa vais ganhar de certeza.
O Luis foi-se embora e substituiu-o o Zé (que não era Zé, mas sem nome não pode
ficar e este serve-lhe muito bem). Tem olhar de malandro, tem gingar de
malandro, lança piropos a todas, beija-me a mão antes de se sentar. À frente, não
tem, sequer, poucos dentes. Cocheia.
O Américo passa pela mesa, toca-me ao de leve e pergunta-me a que horas me
vou embora porque não se quer ir embora sem se despedir.
Eu e o Mateus começamos a ganhar e o Luma levanta-se e diz:
- Já venho.
Já voltamos todos, mas não agora, nem daqui a pouco. O Mateus oferece-me um
chupa-chups de limão
Vamos fumando um cigarro, trocando palavras nos corredores – lá fora começa
a cair um frio de rachar, mas não se interrompem as conversas que se têm com os
sem-frio.
O Zé tem 58 anos, um filho com 22 – daquela cabra que se pôs a ouvir as
putas que estavam no café, ainda devem estar no café, que se diziam suas amigas
– e um de 9, de uma rapariga, e que nasceu com paralisia cerebral.
- Oh tu! – dirige-se a uma rapariga que passa – Eu amo-te, sabias?
Mostra-me, com orgulho, o cartão da consulta dessa manhã.
- Foi a primeira. Fui lá antes de vir para aqui. Mas agora é só álcool. Já
não preciso das outras.
Apertam as bexigas e entramos para o quente. O Zé demora eternidades até
entrar na casa de banho, porque há muitas mulheres bonitas nos corredores. In extremis. Sai da casa de banho e
segue em frente para jantar.
Passo nos computadores, passo junto à televisão e regresso à mesa da sueca,
onde reencontro o Mateus, falando com uma rapariga de camisola branca e frente
a um preto muito preto e muito alto e muito calado, com uma túnica branco sujo,
muito comprida, até aos pés.
O Mateus termina a conversa, saca de um livro, coloca a voz de poeta e
começa a ler para a mesa. Vai levantando os olhos, atento. Preparamo-nos para
iniciar novo jogo, como Augusto, que não fala e estica os dedos, também muito
grandes, como o corpo todo, e com unhas muito grandes e, muito lentamente,
afasta a mão do Mateus de sobre o seu jogo. Sou substituída por alguém e
resolvo voltar lá fora onde encontro a Maria que veio mesmo depois de ter
estado horas no Hospital de Santa Maria. Estica o braço, mostra.
- levei 7 pontos, estive lá horas, mas não podia deixar de vir, porque aqui
encontram-se sempre pessoas muito simpáticas, ao contrário das minhas filhas,
que são umas cabras, más, que não me visitam nunca.
Ouvem-se vidas, enganos, burlas; ouve-se sobre Cristo e os apóstolos e
Judas e Barrabás e histórias de sete anos e mares que se afastam e egípcios e
judeus
- eu adoro a missa do galo.
Recebo dois beijos e desejos de jesus na minha vida enquanto anoitece.
Vai haver uma sessão de apresentação de um escritor qualquer e volto a
encontrar-me com o Mateus. Sentamo-nos todos nos sofás, em roda, e ouvimos o
senhor apresentar os seus livros, que são também outros objectos, como um
espelho, um quadro, um relógio… Para terminar, o autor, que já ouvira dizer que
o Mateus era o Poeta, apresenta-lhe uma folha A4 com um texto impresso, excerto
do seu último livro apresentado e desafia-o a ler para a plateia, enquanto o
acompanha à viola.
Vejo os olhos do Mateus assustados, por um instante. Dou-lhe o meu olhar:
- Quer que o ajude, Mateus?
Treme-se-lhe a voz, que não é a do poeta, e anui. Aproximo-me dele e ele
desculpa-se baixinho:
- Não tenho os meus óculos, Rita.
- Não faz mal.
Ficamos os dois de pé, eu atrás, ele segura a folha, ouvem-se os primeiros
acordes e, baixinho, vou-lhe ditando para que declame, o texto. Que nem recordo
bem sobre que era, que tem palavras complicadas, com muitas sílabas, orações
longas demais e que, penso, não presta para nada, mas mantenho a solenidade do
momento.
Palmas a eles.
Num instante, são 21:30 e apercebo-me que me esquecera de jantar. Resolvo passar
o jantar, despeço-me da Inês e dirijo-me ao bengaleiro. Fumo mais um cigarro,
como um palmier que tinha na mochila e começo à procura.
Encontrei o Américo numa mesa a falar com um rapaz. Ele levanta-se, pede-me
desculpa pelas divergências políticas, pergunta-me se não é a Lágrima de Preta,
do António Gedeão, também cantada pelo Manuel Freire, manda-lhe cumprimentos, faz
uma pausa e refere que, entretanto, se lembrara do outro. E declama o seu
último soneto de Camões da noite.
Encontrei o Zé em pé, encostado a uma parede, ao lado de uma rapariga; tem
um ar cansado, alguns sacos numa mão. Sorri-me, pergunta-me se regresso no
Domingo e despede-se com novo beijo na minha mão, escancara a boca desdentada
num riso aberto e diz-me “eu amo-te, sabes?”
- O Zé é mesmo um engatatão! Até à próxima.
Encontrei o Mateus sentado frente a uma rapariga, com um livro aberto, usando
a voz de poeta, os olhos em lágrimas, meneando a cabeça da emoção. Interrompeu
quando me aproximei. Apertou-me a mão, mudou de voz e despediu-se. Ainda não
encontrara os óculos.
E, assim, é Natal.
Dloing…