domingo, 22 de junho de 2014

Dobras 2 - Rifão Quotidiano


"Uma nêspera
estava na cama
deitada
muito calada
a ver
o que acontecia

chegou a Velha
e disse
olha uma nêspera
e zás comeu-a

é o que acontece
às nêsperas
que ficam deitadas
caladas
a esperar
o que acontece"

Mário-Henrique Leiria, in novos contos do gin

Há alguns (estou cansada de escrever "muitos" porque parece que tudo me aconteceu há muitos anos...) anos atrás, em voz alta e perante uma plateia familiar, leram em voz alta este e um outro texto deste mesmo livro.
Na altura, adorei; achei absolutamente fantástico. Não fixei nem autor nem livro.

Há uns poucos de dias, deambulando Feira do Livro abaixo, este livro olhou para mim e chamou-me. Olhei para ele e não recordei absolutamente nada, mas algo da sua capa (não consigo precisar o quê) me fez pegar-lhe, abri-lo, folheá-lo e, de repente, meus olhos cruzaram-se com uma nêspera deitada a ver o que acontecia e recolheci-a logo.
E zás. Comprei-a.

domingo, 15 de junho de 2014

O primeiro dia de férias

(aos 4 magníficos, ao R., ao J. e a ti, S.)

 
Lembro-me muito bem como foi. Estava um calor abrasador em Lisboa. Aliás, tal como convém, num dia de início de Julho. Era Sábado. As férias lectivas já haviam começado antes, mas algumas actividades ainda continuavam e os pais, hoje, já não sabem o que são “as férias grandes” há muitos anos, pelo que há sempre ginásticas para ver em que semanas ficam na escola, que avós podem recebê-los e quando, onde se encontram os melhores e mais baratos ATL, enquanto se aguardam os dias que foram aceites na empresa, não sem alguns jogos de flexibilidade, de substituições, de quem-faz-o-quê-na-nossa-ausência, cenas que se repetem todos os anos - como se todos os anos não fossem muito semelhantes a todos os outros anos passados -, para que se possam gozar as férias "grandes" em 1 ou 2 semanas espremidas, com sol, com praia, sem horários rígidos, sem pressas.

Dormiam nus, já – adoro vê-los dormir, mas ver os seus corpos despidos estirados contra o colchão, braços e pernas abertos, em cruz, tranquilos, em silêncio, cabelos empastados é um prazer sem adjectivo (que é a forma mais fácil de adjectivar quando faltam as palavras).

Era Sábado e era férias. Pelo que dormiram até quando quiseram - o que normalmente nunca é tanto quanto o que nós quereríamos. Uma das avós tinha vindo passar o fim-de-semana e acompanhou a manhã, o pequeno-almoço, uns banhos para refrescar e o vestir de roupas ligeiras, mas não aquelas, as que estavam destinadas para o 1º recital público que iriam dar pouco depois de almoço, para ver se não se sujavam as camisas brancas e os calções e a saia azul escura que haviam dado uma trabalheira a arranjar – principalmente a dele, que tinha sido emprestada por alguém cujos filhos já tinham ido a vários casamentos e baptizados, vestidos de casamentos e baptizados.

À hora marcada, saímos de casa, para o calor ainda mais abrasador da rua e para o forno do carro e dirigimo-nos para encontrar um lugar naquele topo da Morais Soares, em que, nem em Sábados de Julho era fácil estacionar.

“Era tão bom se encontrássemos uma sombrinha…”

O recital desenrolava-se no último andar do prédio moderadamente velho, divisão pequena, com janelas grandes, tecto baixo: uma estufa.

Sala cheia – pais, avós, tios, familiares de restantes crianças –, algum nervosismo prévio e uma emoção enorme ao ouvir os acordes, os perfeitos e os menos perfeitos (aos ouvidos dos outros, claro), ao ver o ar selecto daquelas crianças que levavam aquele momento bem a sério, mesmo que o último em termos de obrigações, antes das ansiadas férias.

A saída foi rápida, depois dos cumprimentos e dos parabéns – havia que finalmente chegar à rua e respirar, embora a saída da porta não tivesse sido tão respirável como o desejado.

“Deixei a carrinha ali em baixo.”

“O meu ficou nas traseiras; posso ir buscá-lo e pará-lo ao lado do teu.”

“Queres que vá contigo?” – mãe, solicita.

“Não é preciso, obrigada. Vão andando com os miúdos.”

Combinamos aproximar os carros para passar cadeirinhas, para trocar roupas (por mais frescas e, pelo menos as dele, teriam que ser devolvidas a quem emprestara): enfim, para carregar.

A vantagem da Morais Soares (e ainda por cima em Sábado) é que parar em 2ª fila não é drama nenhum – os autocarros (ali frequentes) e os automóveis já nem usam a faixa da direita e qualquer incauto que se atreva passa para a da esquerda com a maior das facilidades - ninguém se importa. Ao parar, é já visível a excitação do início das férias, os quatro todos juntos naquela organização que aparenta tão desorganizada, dentro da carrinha que seguirá de viagem:

“Eu quero ir atrás!”

“Podes dar-me a PSP para me ir entretendo?”

“Pai! podemos ouvir o nosso CD na viagem?”

“Tenho fome; há qualquer coisa para comer?”

“Ainda não tenho cadeirinha…”

“Au, J.! Pisaste-me!”

“Passas-me aí esse livro?”

“Tenho calor… tenho tanto calor…”

“E água? Alguém trouxe água?”

“Ups… esqueci-me de fazer xixi…” – sai, esquece os pudores, esquece o mau aspecto, nós fingimos que não vemos, e faz para aí num sítio qualquer.

A felicidade espraia-se pelas suas caritas suadas, vermelhas, corpos atarefados, finalmente desligados das tarefas e afazeres que o mundo de hoje lhes impõe.

A azáfama pelo exterior também existe, mas é mais silenciosa nas palavras, menos nos arfares. A mala que não cabe de pé, os cabeçudos que é preciso tirar, o saco que está aberto

“esse saco não se pode deitar!”

“essa mala tem de ir à frente, à minha beira”

as mãos habituadas a tantas vezes em que foram de férias e tiveram de arrumar a imensa bagagem, com a pressa que se apodera no querer sair, assim que chega o instante em que isso se torna possível, em que já nada os prende a essa cidade de que tanto gostam, mas de onde tanto gostam de partir.

Cintos postos, ar condicionado no máximo, música que principia; portas ainda abertas para as despedidas, para os últimos beijos, os abraços apertados, mesmo que fugazes.

“Diverte-te J. Tem umas boas férias e dá um mergulho por mim.”

“M., boa viagem. Vê lá se aproveitas para aprender a nadar! E diverte-te muito!”

“Adeus mamã! Diverte-te tu também! Até daqui a 15 dias!”

Portas que se fecham.

Olhares que se dirigem para outras atenções.

Manobra de saída que parece eterna.

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Ser crescido deve ser isto.
Pregar a fundo e seguir.
Olhar a felicidade nos seus olhos, sabê-los bem e deixar que a dor só se apodere do corpo, quando finalmente chegados à Praça do Chile.
 

terça-feira, 3 de junho de 2014

Haikus II

(não é obrigatório, claro, mas ler antes "Haikus I" pode dar uma perspectiva diferente ao II.)


13 de Maio

Há Lua cheia.
Há barrigas cheias; e
fome nas ruas.
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Não me mintas. Dói.
Dá-me uma estalada.
Dói muito menos.
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Três luas ali.
Uma, conheço-a bem.
Outras são tinto?
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Não tenho frio.
Calcei soquetes azuis.
Lá fora, venta.
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Uma pulseira
multicolor, cor amor.
E mui vermelho.
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Silêncio é:
um carro ao longe. E
respirar ao pé.
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Pálpebras caem.
Coração abranda. Ups...
Caneta tomba.
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14 de Maio

Queijo fresco e
tomate com orégãos.
Pena: pouco sal...
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Refeição: papa,
iogurte, bolachas,
a Mãe lê haikus.
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Pássaro pia,
infantes gritam, riem.
Avião passa.
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Ginásio, O
Clube Português. Suor,
saltos e velho.
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No jardim: sobe,
desce, trepa, tropeça.
Cai! E chora.
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Vinte por cento:
mês das almofadas. Chiu...
estão a dormir...
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Campo cor de V.
De Vitória - golo! -
Ou de Vencido...
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Luar trplo. Vão
rente aos telhados. Num
relance, vão-se.
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Marquises. Luzes.
Vidros lisos e foscos.
Sombras que vivem.
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Outro eu. Verei
se o assusto. Buuu!
Foi dormir... longe...
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15 de Maio

Queremos viver
aqui de pé! E, assim,
dormir serenos.
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16 de Maio

Há barcos novos
e usados. Ondeiam,
balançam. Não vão.
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Pardal agride
japonês na expo.
Riem e teclam.
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Correr, correr e
correr. Vi vários e
cansei-me logo.
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Hortelã, lima,
rum e água com gás:
canso-me menos.
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Difícil, é ir
encontrando palavras
que são sentido.
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Lighthouse: a casa
é leve. O mojito
também. Vai mais um?
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Ocidentais são
carecas. Orientais
não. Mas espeta.
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Cara: menina.
Roupa: mulher. Alma
em revolução.
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Preguinho cru com
sal e conversa. Calor
e rio Tejo.
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Cores de céu e
cor de Tejo celeste.
Em celestial.

Haikus I


A 1ª vez que me cruzei com a existência de haikus foi no Musicbox, não num Poetry Slam, mas num outro qualquer evento de que já não me lembro.

Nunca vos acontece algo que vos aparece pela 1ª vez e de que nunca tinham ouvido falar, passar de repente a ser algo que se cruza convosco a cada esquina?

Acontece-me de vez em quando, e fico sempre a pensar se já não me teria cruzado com isso (um conceito, uma palavra, um músico, um livro, um tanta coisa) antes, até por diversas vezes, mas que não tinha surtido em mim qualquer efeito, até àquele momento em que fez baque. Recordo-me de que me ri a bom rir, nessa noite.

Passado pouco tempo, numa conversa com um amigo, o haiku apareceu de novo. E, durante uns tempos, fomos “falando” em haiku, o que deu algum gozo, até porque escrevê-los em jeito de resposta e em simultâneo desafiando uma contra-resposta, originou diversas situações que se podem considerar como caricatas, pelo menos no linguisticamente falando.

Voltei a ouvir haikus, numa sessão de Poetas do Povo. Não foi o mesmo baque, talvez por já ter ouvido alguns antes, talvez porque a 1ª vez tivesse sido, efectivamente, a 1ª vez, talvez porque estivesse num dia menos “sim”, talvez por muita coisa. Mas voltei a gostar daquela forma, para mim meio publicitária (ou assim a vi), de dizer em versos de cinco mais sete mais cinco sílabas… qualquer coisa.

Recentemente, voltei a pensar neles. Não me lembro do porquê. Mas designei um dos meus caderninhos novos, mais pequenos, como o livro dos haikus (embora sem ter tido tempo de o intitular, de forma física) e desatei a escrever. Foi assim como que uma urgência que senti.

Tive de relembrar o número de sílabas (não sabia muito mais sobre “aquilo”), recorrendo a esse amigo que aproveitou para me enviar um link sobre o tema. Claro está que não li logo o que ele me havia enviado! Antes de mais, havia que libertar a urgência. Só após os primeiros li um pouco sobre haikus – na fonte que ele me havia enviado e numa outra que pesquisei.

Não vou reler agora, pelo que o que escrever de seguida é absolutamente passível de estar meio errado (agradeço-vos todas as correcções que vos ocorram), porque o meu objectivo de escrita neste preciso momento é falar sobre o que “aquilo” foi para mim e não sobre o que efectivamente são “aquilo”. Mas, para chegar ao que foi para mim, há que deixar uma ou outra deambulação:

·         Haikus são uma forma de poesia japonesa (até aqui, eu sabia) iniciada no século IX (mais século, menos século);

·         É constituída por três versos com 5 on, 7 on e 5 on – nos haikus ocidentais, é comum traduzir-se a palavra on por sílaba, mas, em japonês, tal tinha a ver também com a duração do som, pelo que uma exclamação – por exemplo “aiiiiiiiiii, a minha vida!” teria, originalmente, 8 on, sendo que a exclamação contaria como 3 on (ou menos ou mais, conforme estejamos no Rock in Rio, em casa ou com uma “granda” pica; isto dá-nos um jeitaço, porque podemos contar as palavras com on ou com sílabas, conforme nos dê mais jeito, mas resolvi ignorar esta menção, porque tenho tendência para me agarrar aos números exactos e optei sempre pela interpretação sílaba – se já assim foi um desafio, imaginem como seria se fosse contar tempos!)

·         Os temas mais comuns eram sobre Natureza (sendo que Natureza, como a li, seria toda a Natureza, incluindo a humana e o que esta vê ou sente);

·         Durante uns tempos, “jogava-se” haiku, sendo que uma primeira pessoa lançava sobre a “mesa” o haiku de arranque, e os restantes iam versando ao desafio (“isto” também tinha um nome, mas já não me lembro…);

·         Na poesia ocidental, muitos escreveram haikus, incluindo vários portugueses; há quem diga (talvez muito reputados – não me recordo e não aprofundei) que a “quadra” portuguesa tem muito de similar ao haiku japonês.

 

Agora, vamos à minha vida.

Durante uns dias, de semana sim, passei por uma experiência por que nunca antes havia passado.

Dei por mim parando na rua (a pé, de carro), fechando os olhos e estando com a atenção a mil. O que é engraçado é que não foi calculado. A urgência era escrevê-los e não senti-los. Mas acabei por senti-los, deixando para a escrita um segundo plano.

Dei por mim a ouvir todos os sons que me rodeavam; dei por mim a ler todas as publicidades, cartazes de campanha; dei por mim a cheirar os aromas de Lisboa (nessa semana, por acaso, estive por diversas vezes sozinha no meio da rua e em sítios onde não costumo estar ou, pelo menos, sozinha); dei por mim a observar pormenores, reflexos, jogos de luzes; dei por mim a experimentar-me, em suma. Não sei descrever melhor a “semana-dos-haikus”. Foi uma experimentação. Gostei do que me fez. Não contava. Foi inesperado.

Quanto ao resultado, foi o que foi. Não me interessou muito. Foi um jogo de transposição seguindo determinadas regras que me eram “impostas”. Tenho a perfeita noção de que, quando eu os leio, vejo, sinto, cheiro, ouço o que se passou naquele momento. E de que quem os leia, muito, mas muito dificilmente. Mas deu-me gozo suficiente para os aqui colocar. Até porque, neste passado fim-de-semana, em almoço, quando dei um dos meus cadernos de “mala-de-fim-de-semana” à minha filha para ela se entreter com qualquer coisa, ela me disse:

- posso voltar a ler os haikus?

Não era aquele o caderno. Mas ela sabia que eles existiam. Falei-lhes deles (e do que pesquisei) durante a “semana-dos-haikus” e, enquanto eles tomavam o pequeno-almoço, lia-lhes o que havia escrito de véspera e explicava o que os tinham originado. Adoraram o das leituras de pequeno-almoço!

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Quem me conhece, já sabe que é muito comum iniciar projectos de forma muito empolgada e deixá-los num repente, esquecendo-os num hoje, como se não tivesse existido o ontem. O que eu sinto são urgências; e sigo-as. Acho que a isto se chama paixão. Guardo-as comigo num cantinho. Esta, tem ficado, em forma de caderninho fininho, roxo, dentro da minha “carteira-de-dias-de-semana”. Nunca se sabe… Há muitas paixões que dão em amor.