sábado, 23 de maio de 2015

O que lhe ouço…


… com um misto de enorme admiração e, quase, inveja.
 

Quase no saindo de casa:
M: Posso levar um dos teus colares, hoje?
Eu: Podes, Maria. Mas já sabes que alguns são frágeis. É melhor escolheres um destes – digo, mostrando o sítio dos de continhas coloridas e compridas.

E, no carro, depois de deixar o mano (rai’s partam, Rita, quem diria… logo tu?...).
Eu: vejo que também trouxeste uma pulseira das tuas. Fica bem com os colares que escolheste.
M: Pois fica, mãe. Um deles tem contas redondas. Mas o outro - vê!, vê!, - tem estas contas com vários lados – estás a ver? – e são como as contas da minha pulseira, só que as da minha pulseira são cor-de-rosa e estas são vermelhas com uns pontinhos de dourado!
Eu: Vejo, vejo, Maria
e aproveito um sinal vermelho para palpar as que ela me pede para sentir, porque, no seu saber de menina-pequenina-de-sete-anos-de-idade, no sentir está mais do que no ver e no saber.

M: Fica até eu chegar até ao fundo do corredor, sim?
Eu: Claro, Maria. Vê lá, não te distraias.

Dias que correm com um misto de necessidade de pensar rápido e lento – rápido em algumas decisões, por vezes com a consciência de controvérsias, mesmo que perante aqueles para os quais não queremos ser controversos; lento em algumas decisões, as que teimam em não nos largar a mente, quais lapas em rocha açoriana, fomentadas pelas acções de formação comportamental, em que promovem a necessidade de
nos apaixonarmos
nos empenharmos
sabermos o nosso caminho
para que, simplesmente, encontremos a chamada “Felicidade no Trabalho”, o que, admito, é algo muito importante, tendo em conta o tempo que lhe despendemos.- E, isso, no mínimo.
“Dieta de emoções negativas.”
“Como?”, respondo eu?

E, entre trabalho e escola-dela, vou continuando:
“Como?”
“Eu quero. Quero mesmo. Digam-me só como?”

Eu: Então a visita foi gira?
M: Foi.
(nunca falam muito da escola e do que lhes acontece nesses entreténs).

Olhando pelo espelho:
Eu: “Então e os colares? Estás sem eles…”

Pausa moderada. Resposta perfeita. Com um misto de admiração e, quase, inveja, ouço-lhe, num quase repente, olhando para mim fixo pelo espelho visor que me permitia retrovisionar, mesmo que sendo ele o mesmo, o re-flexo, a troca.
Olhos fixos nos meus, um pender ligeiro sobre o peito onde brilhariam, como de manhã, nossos colares de contas esféricas, facetadas, rosadas, avermelhadas, com pontinhos de dourado, duas voltas pelo pescoço para não se tornarem tão longos e um perfeito e célere:

M:UM deles está perfeito, mãe!!

(Não pergunto pelo outro. Nem me lembro do outro.
Calada, até casa, penso: como te admiro, meu amor. Como te admiro.)
 

sexta-feira, 8 de maio de 2015

Origens e Destinos


Estava eu no outro dia muito bem chegando ao Largo de Dona Estefânia, quando me deparei com ele.

Estava a pé, havia estacionado na Pascoal de Melo, num daqueles pontos que não se me oferece dúvida sobre o percurso mais próximo para casa ser “por baixo” ou “por cima” – era por cima – já tinha anoitecido, a vontade de chegar a casa era grande por muitas razões, mas fiquei, especada, mesmo frente ao Santander, a olhar para ele.

A rua estava quase deserta; muito possivelmente já havia passado por ali por diversas vezes e ele já talvez ali estivesse. Demasiada luz, na envolvente; demasiado ruído daquele nos persegue nas ruas agitadas e de dentro da mente, quase sempre, agitada; demasiados movimentos, demasiadas distracções ou, até, possivelmente, um estímulo qualquer que, antes, ainda não tivesse existido, co-existido, com o meu passar por ali… talvez já lá estivesse há muito tempo, mas só naquela noite o vi.


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Conheço o Largo de Dona Estefânia desde sempre. Pode não ser um sempre muito grande, mas é o meu sempre.

No centro da rotunda – que, por sinal, foi tema de trabalho de grupo com muita discussão, num projecto que tive de desenvolver na cadeira de Transportes e que me obrigou a passar várias horas de frio, tanto que tinha de chuchar os dedos para que não enregelassem, a contar carros que vinham de determinada Rua, registando também para que Rua iam, de forma a construirmos uma matriz O/D, que é como quem diz, de Origem/Destino (por sinal, fui eu que escolhi o “cruzamento de estudo”, mal sabendo que seria talvez dos mais difíceis de trabalhar) – existe uma fonte. Ornamentada por uma estátua de Neptuno – tantas e tantas vezes que a minha avó me falou de Neptuno, daquele Neptuno – circunvalada pelo destino-taça amplo da água que brota de diversas origens-repuxos que a expulsam, como que por magia, mesmo por detrás do muro que abraça a concha onde se suspende a Divindade.
 
Recordo-me que, quando em pequena, quando fazia o percurso casa-escola por aquele mesmo local – “Atravessa sempre pela esquerda, que é mais seguro e eu quero conseguir ver-te da varanda!” – em torno disto tudo, havia ainda uma sebe, mal-tratada, e uma vedação em ferro, verde-oxidação. Durante anos, a fonte não brotou. A minha avó encontrou uma vez uma fotografia numa publicação da Junta de Freguesia dos tempos áureos da fonte do Largo de Dona Estefânia e eu pude ver que, em tempos, a sebe já havia sido um roseiral magnífico e exuberante.

Hoje, já não há sebe, já não há vedação, já não há rosas. Apenas um rasteiro verde logo após as pedras de calçada, mas, pelo menos, Neptuno é branco e a fonte jorra.

 
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Poder-se-ia pensar que havia ali alguma força-desejo, quase fálica em imagem, que o fazia agir desta forma. Nem o vento, apesar de pouco, o demovia.

Uma das origens-repuxos resolvera contrariar o destino-taça que alguém desenhara para ele há já muitos e muitos anos (andei a ver se percebia desde quando, mas parece que esta fonte deu muitas voltas, muitas mais do que as que fui presenciando durante o “desde sempre que pode não ser muito grande, mas que é o meu sempre”) e jorrava em sentido absolutamente contrário, fazendo com que o líquido-pai que brotava se esparramasse sobre pedras de calçada calcária não preparada para tanta força por área, feita carga pontual, qual enxurrada de encher as notícias de inundações.

E o fluido puro – “na fase líquida, a água é incolor, inodora e insípida”; “a água tem moléculas que interagem entre si, através de pontes e ligações”; “a água é transmissora de corrente eléctrica”; “a água é um excelente solvente”; “a água é essencial à Vida”; “a água é o principal constituinte do corpo e da Terra” – ejaculado como que por magia, mesmo por detrás do muro que abraça a concha onde se suspende a Divindade, espalhava-se pelas ruas, sem ligar a Origem nem Destino, contrariando qualquer matriz nominável, infiltrando-se entre inertes e ligantes, ebulindo-se, em fracção proporcional à temperatura da noite, espraiando-se, livre, para o lado oposto de Neptuno - rei dos mares, senhor das ninfas e das sereias – tudo graças a um ponto, uma fonte de jacto, que resolvera, pelo menos naquela noite, contrariar aquilo para que fora criado.
 
Mesmo à minha frente:
 




 
Não conseguem ver, pois não?

São difíceis de encontrar e, mesmo encontrados, passam grande parte das vezes completamente despercebidos.

Nos tempos de hoje, pelo menos.

 
 

domingo, 3 de maio de 2015

How long will you live? Or hate? Or love?



Uma das razões que me fazem perceber que não podemos ser eternos, nós, os humanos-conhecidos, já que, no que diz respeito ao “resto”, não acredito na eternidade, é porque.

é porque. Eu já havia tido uma fenda sacal na minha cabeça, enquanto tentava adormecer “ontem” à noite, de madrugada, depois de constatar os 39ºC fatídicos de ben-u-ron da pequenina que implicariam um reavivar de mente depois das 1:30, que já não esperava, por já estar escrevendo na cabeça havia algumas horas (as do tempo do filme que me acompanhou) e o que escrevia não era sobre febre, nem tosse, nem o quão tarde já era, embora roçasse, em alguns pontos, os filhos, as crias, naquela forma de ser carnal, não a de protectorado, mas sim a de expositora de vida, de complexo de vida, de complexo de amor, que por vezes é o complexo de ódio e que é, muitas vezes, mas, pelo menos, possivelmente, a de amor-ódio que, no meu ver - que é um ver de bagagem que transporto, nestes 38 anos (quase trinta e nove), e que não é, nada mais nada menos, que a minha bagagem, a da minha vida, a da minha arte, a que construí, a que me foram construindo à volta, a que me foram oferecendo, a que me foram impondo – só é amor. Todo o ódio se pode fazer desaparecer se em amor. Na minha bagagem. Claro.

Se fôssemos eternos, nós, os humanos-conhecidos, poderíamos chegar aos 38 e não nos deixar maravilhar por Arte, neste caso, da 7ª, absolutamente maravilhosa em imagem, em interpretação, em “naquilo que nos deixa” – amor, ódio, bagagem, amor-ódio – de há tantos anos (o filme, vi depois, é de 1966) e pensar que
a Vida pode imitar a Arte
a Arte pode imitar a Vida
(já foi alvo de discussão ad-eternum com um amigo numa longa noite de há muitos anos atrás) -,
mas nós não vivemos tanto quanto a Arte, pelo que nos podemos dar ao luxo de dizer:
- já vi;
- já ouvi;
- já senti;

mas, também
- não sei – vou ver;
- que bonito – grava-me para ouvir;
- ui, foda-se, que coisa mais bonita…

e, sempre, continuarmos a esperar que algo nos faça
ver
ouvir
sentir,
justamente como se fosse a primeira vez. Mesmo que com mais de 40 anos de intermédio.

“Who’s Afraid of Virginia Wolf?”
I am.
I am not.

Just let me think, before I answer, if we´re talking about reality or about illusion…

sábado, 2 de maio de 2015

Dia Mundial da Dança…


Édipo matou o seu pai e casou com sua mãe. Com quem teve filhos.
Em culpa, sentida, cegou-se. E ela, a mãe, suicidou-se.
Tal, feito mito, na antiga Grécia.
O que terão observado, os Antigos, para arquitectar Édipo?

Freud, numa época, mesmo que muito posterior, muito antiga, conheceu a história, misturou-a com realidades – analisadas, observadas - e fez História, dando-lhe seu nome, em forma de “Complexo”. Ao que sei, não se cruzou com quem tenha morto seu pai, levado sua mãe ao suicídio e decidido, por mãos próprias, cegar-se.

E, assim, com séculos e séculos que vão passando, chegamos aos dias de hoje, pleno (já posso dizer pleno, já passei por aquela fase em que me dizia “eu sou século XX; nunca vou ser século XXI, essa estranha época, sem Guernica, sem The Sounds of Silence, sem Mafalda, sem 25 de Abril, Sempre!, sem Cem Anos de Solidão, sem La Quête, sem Cinema Paraíso… enfim, sem “eu””), onde as descobertas se iniciam por uma moeda que muda, um medo que se instala – medo de falar, medo de ver, medo de comunicar -, complexos com títulos que todos conhecem, mas nem todos encontram nas suas vidas, porque de olhos cegos, de culpa, de distracção, de maior força a fazê-los olhar para o lado do que para a sua frente, maior força a fazê-los olhar para os seus umbigos do que para o que eles ocultam.
 

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De manhã, no percurso casa-escola, ouvimos anunciar ser, naquele dia, O Dia Internacional (ou seria Mundial, sei que achei muito grande, perdoem-me) da Dança.
Logo disse:
- À noite pomos a Nina Simone de parte e pomos um CD mais dançável para comemorar o dia!
- Está bem, mãe! – responde ela, num logo quase tão logo como o meu.

Fim de tarde, como o costume:
- João, treina piano!
- Mas, ó mãe… hoje tive aula…
- Tens razão… Maria! Faz os têpêcês!
- Mas, mãe… Posso treinar piano antes e depois ver televisão?
- Como queiras, Maria. Desde que faças todas as tuas obrigações antes de a mãe ter o jantar pronto… Pena só veres essas porcarias…

Jantar, já com o CD trocado, e jogo de palavras. Pequena discussão sobre:
  • Campo lexical;
  • Palavras “da mesma família”;
  • Área vocabular
(inventam cada termo, hoje em dia…)
Temas: casa, água, vários, mas não tantos como isso, porque o campo (e a mesa de jantar) é vasto, mas o tempo, o do relógio, aperta.

Fruta e levantar a mesa.
Mesmo a tempo:
- Meninos, agora vocês escolhem uma música e vamos comemorar o Dia da Dança!
- Mas, ó mãe… Eu não quero dançar…
(isto, enquanto a outra já preparava pista entre sofá e móvel de têvê, arredando mesinha, afastando bonecos, ajeitando roupa em modos de bailarina, treinando passos).
- Mas posso escolher a música? Pode ser aquela do “agora não, que joga o Benfica!”?
- João. Cada um comemora como quer. Uns dançam, outros imaginam, outros vêem. Tu escolhes.

Pequena pesquisa e volta atrás. Aos seus postos! Movimento Perpétuo Associativo. Play!

Dançámos, eu e a minha pequena, primeiro em descoberta de ritmo, olhos nos olhos, quantos passos podemos e sentimos dar em cada direcção.
J. no sofá, observando; M. com jeitos de bailarina; e eu aos pulos, teatrando, com a expressão cambiando entre o sisudo
-Agora não, que é hora do almoço...
-Agora não, que é hora do jantar...

e o quase tonto, mesmo que muito sério
Agora sim, temos a força toda!
Agora sim, há fé neste querer!

ao som da letra.

Nem o Benfica tinha passado e dei por ele (e, logo depois, ela) a rir-se a bom rir. Cheio daquelas covinhas que encantam, quando surgem, porque é o riso do corpo todo, não só o riso da boca, não só o riso da cara, não só o riso da alma.
Achei – parva – que era da disposição, do Dia Mundial da Dança, da letra, sei lá do que achei. Gozei. Isso sei.
E fui gozando. Como fui gozando.
Sabe tão bem ouvir aquelas covinhas. Sabe tão bem ouvi-los em conluio, ambos sobre nós, gargalhando – com boca, sobrancelhas, olhos, corpo que se espraia pelo sofá, corpo que, olhando de soslaio para o gajo, se espraia pelo ar, som que se contagia pelo ar que respiramos.

O tema não é assim tão longo, o Benfica já tinha passado, e eu continuava vendo meu filho se rebolando pelo sofá, corpo descontrolado, olhar que se cruzava de vez em quando com o da irmã - que bailava, com ar cúmplice - e com o meu - com ar de envergonhado meio sem-vergonhado -, gargalhadas já quase descompassadas quando, num repente, entre gargalhada e meia, meio deitado, lhe ouvi:
- Ó mãe!... É que, com essa camisola e sem soutien, ficas com as mamas todas aos saltos!!!!
E ela, a M., perfeitamente sabida da imagem que captara seu irmão, seu mais que tudo, riu-se ainda mais abertamente, entre passos de dança elaborada e agarrou-mas e riu e riu. E riu. E riu.
Enquanto ele ria. E ria. E ria.
E eu? Bom. Eu ri, ri, continuei pulando, mas decidi agarrá-los com ambos meus braços – um do ar, outro do sofá – e
rimos
rimos
rimos…

Com Édipo, Freud ou sem eles, nos espaços, diminutos, de pais e filhos de século XXI que restavam por entre nós.

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Não li, em lado nenhum, mas eu tenho ainda muito e muito para ler, sobre Édipo e mamas; mesmo sobre o seu Complexo – termo de Freud – e mamas. Dançando. Neste século XXI, que há-de ser o vosso século. E onde, Édipo, Sófocles, Freud e a vossa mãe se hão-de encaixar. Porque cheio de mamas.