Quando era pequena, por vezes, ia para o trabalho com a
minha avó.
Apesar de ser longe e de, a certa altura, ter verificado
que poderia vir para mais próximo de casa, resolvera não deixar a escola
secundária da Cova da Piedade (mais tarde, e para sua grande alegria,
rebaptizada de António Gedeão) e aí se ficar até que as leis a obrigassem a
reformar-se.
Dizia que não conseguia imaginar-se a não ter de passar o
Tejo, muitas vezes ao amanhecer, para ir trabalhar.
Quando, em pequena, ia com ela, apanhávamos o autocarro
até à Baixa e, depois, o cacilheiro, até Almada (onde, claro, ela começava logo
trauteando fados de Lisboa, que era a sua casa, apesar de transmontana
orgulhosa) e, do outro lado, novo autocarro e percurso a pé, desde aquela rua,
à esquerda, que subia, até à escola.
Entrávamos pelos portões e eu olhava aqueles “tão
grandes” que se espraiavam pelos recreios, aos pares, em pequenos grupos
- olá s’toura? Já corrigiu os testes?
(eu sabia que não, só na 2ª feira os entregaria; até
porque a ajudava a corrigi-los, naquela cama de colchão com palha, verificando
se haviam escolhido bem as conjugações de átomos e suas designações na tabela
periódica e não tinham deixado nenhum ião positivo ou negativo esquecido,
construindo moléculas instáveis, impossíveis de se manterem por muito tempo
porque, toda a gente sabe, a Natureza exige equilíbrio e se trouxermos para cá
palmeiras e não vierem também os macacos, elas padecerão às garras de
escaravelho; “A Carla só falhou uma, Cia: o cloro só pede um oxigénio e ela
pôs-lhe dois; mas de resto está tudo bem, acho que vai conseguir o 3, neste
período”)
- Ainda não, Carla. Só na 2ª feira. Vou acabá-los no
fim-de-semana.
Ela seguia para as aulas ou para reuniões de professores
e deixava-me na sala deles, a fazer desenhos ou a ler e algum me pegava pela
mão e perguntava-me se eu queria ir com eles para o laboratório enquanto davam
uma aula e lá ia eu – inevitavelmente, porque os conhecia a todos – para uma
das salas do laboratório de Física ou de Química, onde passava horas a brincar
com imans que empilhava para fazer garagens para os meus carrinhos, desafiando
pólos de vez em quando (eram fáceis de identificar, naquelas cores azul e
vermelho dos paralelepípedos pesados) só para ver se conseguia contrariar suas forças, o que, ivariavelmente, nunca conseguia;
brincava com pipetas e tubos de ensaio e pompetes – como eu gostava das pompetes, que
eram cor de laranja, em borracha rígida – e eu ia à torneira encher um tubo de ensaio
com água (sem cloreto de sódio) e depois passava pelos canteiros e desfazia com pilão folhas
ou pétalas que punha lá para dentro, pousava-os naquelas estruturas com ocos, de forma a
que não caíssem, pespegava uma pipeta lá para dentro e, mesmo sem ligar à
ausência de toxicidade do conteúdo, o gozo que me dava encaixar a borracha cor
de laranja, apertá-la, sentir um ventinho na cara e ver o fluindo pastoso a
subir pipeta acima, ora de uma cor, ora de outra, conforme se tratassem só de
daninhas ou de malmequeres ou margaridas ou papoilas, tudo crescente sem ser
semeado.
Reencontrei a Física e a Química, com estes nomes, assim
que pude e não tive qualquer dúvida em escolher Electrotecnia em vez de
Têxteis, no 8º, Quimicotecnia em vez de Gestão, no 9º, área A, em vez de
qualquer outra, no 10º.
Acompanharam-me com prazer durante vários anos e, só mais
tarde e frente àqueles senhores de ar sisudo e distante que povoavam a
faculdade, achei que, afinal, não gostava daquilo. Tão pouco de física e nada
de química habitava aqueles doutores e eu só tentava relembrar quando íamos
para a rua com aquela professora tão magnífica ver o que era um “vedor”, com
uma forquilha de ramo flexível que ajudáramos a colher e uma mangueira a brotar
água, sob as árvores do Liceu Camões; ou quando me esquecera de usar a pompete
para tirar um pouco de ácido sulfúrico e senti todo o meu interior em chama,
mas resolvi não dizer nada à professora de Química Analítica, só para ela não
achar que as suas aulas sobre símbolos de “atenção” nos rótulos não tinham
servido para nada.
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Ontem, estava eu no meu sofá, deitada de lado a ler um
livro cheio de pontos de enchimento interior, quando meu indicador esquerdo se
deparou com uma borbulhinha no exterior da minha coxa, também ela esquerda, e
se resolveu coçá-la com a unha.
Logo no preciso instante em que unha e borbulha se cruzaram,
um fino picar perpassou derme e epiderme do meu braço esquerdo, mais ou menos a
meio do úmero, para onde meu olhar se dirigiu de imediato. Nada. Não havia nada
ali.
Repeti o gesto dando ordem com a mente ao indicador para
que, de novo, voltasse a fazer roçar unha com carne em coxa para ver no que
dava.
De novo sucedeu.
Poisei livro e braço direitos e repeti o gesto uma e
outra vez, sentindo sempre o mesmo.
Resolvi procurar no passado para lhe encontrar uma
lógica. Tracei uma recta com o olhar e verifiquei que a distância mais curta
entre aqueles dois pontos era um segmento de recta no ar e, ciente de que a
transmissão de som ou calor se dá melhor pelo corpo que pelo ar, concluí que o
mesmo teria de ocorrer para a transmissão de sensações.
Assim, saí da matemática, tentei sair da física e entrei
na química, onde já não se verifica esta linearidade de transmissão. Molécula
que espevita molécula, tenho à minha frente um ponto-coxa de origem e um outro,
braço, de destino. Sem percurso definido. Teria passado por onde? Resolvera dar
a volta inteira pela perna, até ao pé, para subir depois por uma qualquer
artéria, remando contra a maré, até chegar ao coração e depois se evadir
antebraço abaixo até que chegou momento em que resolvera sair? E teria passado
no cérebro, o que tudo manda, sem minha ordem? De que lado? E que tipo de
ligações utilizara? Iónicas? Covalentes? Ou agarrara-se ao Ferro e se
metalizara? E onde se transformara coçar em pico? Teria passado pelo estômago e
misturado com bolo, suco e enzimas ou teria sido fruto de movimentos
peristálticos? Ter-se-ia imiscuído com alcatrão em vasos pulmonares e se
adelgaçado para não absorver e sair fininho e de fininho por aquele ponto, sem
qualquer ponto visível, para onde eu olhava e pensava: “não haveria sítio mais
fácil, mais mole – certamente existe uma escala de mohs para o corpo humano -,
por onde tu conseguisses sair?” Porquê escolher um que te exigiu camadas e
camadas do órgão mais pesado do corpo todo?
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Não encontrei resposta.
Voltei à Ana Margarida de Carvalho e seu “Que importa a
fúria do mar”. Voltei a dobrar páginas, que são elementos físicos de origem química
e se deixam submissas aos meus dedos, e dei ordem interna para que não mais
voltassem a percorrer coxa ou qualquer outra parte do meu corpo.
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Entre um início e seu fim há caminhos que não cabem nas
aulas de física e química da minha avó ou dos meus professores do Liceu Camões.
Ou, quem sabe, por vezes é mais fácil regressar às fúrias
de um qualquer mar, entre a Marinha Grande e o Porto e Lisboa e o Tarrafal, em
linha curva, ondeada, enjoada, do que indagar sobre todos os caminhos do que
sentimos. Entre um início e seu fim.