domingo, 28 de junho de 2015

Tão “simples” como isto…


A arte imita a vida; a vida imita a arte. Não sei. Já deu para uma longa noite, vai para muitos anos, na minha ilha, com exemplos de um lado, hipóteses do outro, formas de arte, vidas, muitas.

Mas não sei e, hoje, nem quero saber.

Uma coisa, porém, é certa. A vida acompanha-a.

Como a vida existe – para quem e quando existe -, é impossível repetirmos o que vemos, o que ouvimos, o que lemos, o que sentimos e, ainda mais, experiência tem-me dito, quando o que pretendemos é, exactamente, re-viver um outrora.

(ainda agora comecei e já me perdi, bolas. Não tenho cura…)

 

Onde eu queria chegar com esta lengalenga toda é tão simples que por vezes quase me aborreço por, de cada vez que pego nesta coisa e penso em chutar palavras cá para fora, me complicar tanto, sem dar por nada, excepto quando já vou tão lançada que, determinantemente, já não volto atrás.

 

Bom. Eu só queria dizer que naturalmente que as sensações (e já nem vou entrar no menos físico, como os sentimentos, porque aí, então, ainda mais “simples” seria de concluir) que nos apanham nas curvas de uma qualquer cadeira de cinema (sendo este o caso) dependem muito de quem, naquele momento, ali se sentou, sendo certo que o “quem” é sempre também um “quando” e um “como” e um “com quem”.

Enfim, como tentei atrapalhadamente explicar antes, um instante de vida com letra maiúscula que se sente frente a um écran (ou uma tela, ou uma página, ou um muro, ou um sem-fim de acabamentos quase tão enorme como o sem-fim de vidas, mesmo que de um só indivíduo, que possam ser apanhadas nas curvas de um qualquer assento) será sempre um único, porquanto carregado de instante, mesmo que em se tratando de tempo mais longo que um ponto.

 

Sou sensível à assinatura. Por mais que se diga, é difícil sermos alheios aos comentários, ao que se ouve sobre assinaturas de arte (ou sobre discursos políticos, ou sobre tanto que nos rodeia) – quem nunca olhou primeiro para a assinatura, antes de apreciar; quem nunca chegou ao fim e viu a assinatura e só depois apreciou, que se apresente: faço questão de conhecer. Há-os mais sensíveis e menos sensíveis. Há quem apresente sensibilidade apenas para o que pode ser considerado como mais “supérfluo” e nunca para o essencial, como os rótulos pessoais, raciais, de escolhas, amizades.

 

Pixar e Disney são assinaturas imperialistas, onde o bem prevalece, nos admira em humor, mas raramente nos surpreende no final.

 

Tanto círculo e tudo apenas porque o raio de um filme da Pixar/Disney arrancou àquela vida, apanhada nas curvas daquela cadeira, uma catadupa de emoções que transbordaram curvas de carne abaixo, por bem mais que uma vez, apenas por mostrar o quão importante, para a vida, são todas as memórias e que, sem as piores, não vale a pena esperar pelas melhores e que serão, efectivamente, As melhores se assim a vida, o nós, o entender.

E que é importante transbordar.

“Divertida-mente”, preferencialmente.
 
Tão "simples" como isso.


 

sexta-feira, 19 de junho de 2015

Comida enlatada


Vá. Vão ao Google e façam lá uma pesquisa de “comida enlatada + saúde”.
Vão encontrar:
“Comida enlatada favorece obesidade e diabetes”
“Comida enlatada faz mal à saúde”
“Alimentos enlatados e embutidos causam danos à saúde”
(que raio serão alimentos embutidos? Será em nossa pele, nossa boca, nosso estômago? Onde ficarão eles cravados? Enfim, não vou desenvolver…)
“Pesquisa de Harvard alerta que enlatados elevam riscos de…”
(nem me atrevo a abrir e deparar-me com todos os riscos que tenho andado a elevar!!!)
“Os perigos de consumir enlatados – Melhor com Saúde”

Cá em casa comem-se enlatados. É verdade que são poucos, mas o que seria dos Domingos em que vimos de dias longos ou dos dias em que me esqueço de por algo a descongelar ou daquelas noites em que chego tarde e me apercebo que só há um resto de arroz ou um resto de massa ou um pacote de batatas fritas (não me atrevo a pesquisar “batatas fritas + saúde”, chiça!!) sem as salsichas enlatadas ou o atum enlatado ou os cogumelos enlatados? Antes também comprava com frequência feijão enlatado (deve ser das poucas coisas que o J. não aprecia muito e a M. nem vê-lo) e legumes enlatados (que punha em arroz), mas deixei-me disso há uns tempos.

Quando vivia na minha ilha, em Carcavelos, aí ainda mais. Na altura não havia tanta oferta de comida pronta, havia uns molhos feitos, mas era preciso fazer a massa (também tinha desses); havia pizzas congeladas e Telepizza (enjoava as primeiras e eram caras as segundas – só em dias especiais); e havia umas latas fantásticas e de conteúdo bem condimentado, de Feijoada à Transmontana (era o meu preferido) e de Chispe e de mais não me lembro o quê, enlatados, pois claro, com presença assídua no carrinho de compras do Pingo Doce do Alto da Barra.

É um facto que a minha saúde não é propriamente de ferro (andei eu para aí a gabar-me a não sei quantas pessoas a dizer que certamente seria imune a gripes e constipações, as tipas, certamente, ouviram-me e zás!, pespegaram-se-me ontem com ranhoca, tosse, peso na cabeça e sensação febril), mas também não tenho tido problemas assim de maior (os, muito pontuais e de moderada envergadura, que tive, lamento, mas não cabem neste texto, faria perder o efeito, pelo que os torno, hoje, inexistentes).

Portanto, comida enlatada faz mal à saúde. Tem direito a prospectos, estudos de Harvard, propaganda, “quiçá”, até, “outdoors” – normalmente vou distraída e não os vejo, mas aposto que já os houve para aí, em tempos de vacas gordas, claro, nos quais havia dinheiro para desperdiçar em propagandas de prevenção e outros disparates que tais –, títulos de revistas, primeiras páginas, … Enfim, um sem número de formas de luta dos preocupados com o Mundo contra a comida enlatada.
ABAIXO A COMIDA ENLATADA!!

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Queira alguém explicar-me, então, por que raio me custa sempre tão, mas tão, mais digerir comida entalada do que comida enlatada.

Alguém?
 

domingo, 7 de junho de 2015

Física, Química e a Fúria do Mar


Quando era pequena, por vezes, ia para o trabalho com a minha avó.

Apesar de ser longe e de, a certa altura, ter verificado que poderia vir para mais próximo de casa, resolvera não deixar a escola secundária da Cova da Piedade (mais tarde, e para sua grande alegria, rebaptizada de António Gedeão) e aí se ficar até que as leis a obrigassem a reformar-se.

Dizia que não conseguia imaginar-se a não ter de passar o Tejo, muitas vezes ao amanhecer, para ir trabalhar.

Quando, em pequena, ia com ela, apanhávamos o autocarro até à Baixa e, depois, o cacilheiro, até Almada (onde, claro, ela começava logo trauteando fados de Lisboa, que era a sua casa, apesar de transmontana orgulhosa) e, do outro lado, novo autocarro e percurso a pé, desde aquela rua, à esquerda, que subia, até à escola.

Entrávamos pelos portões e eu olhava aqueles “tão grandes” que se espraiavam pelos recreios, aos pares, em pequenos grupos

- olá s’toura? Já corrigiu os testes?

(eu sabia que não, só na 2ª feira os entregaria; até porque a ajudava a corrigi-los, naquela cama de colchão com palha, verificando se haviam escolhido bem as conjugações de átomos e suas designações na tabela periódica e não tinham deixado nenhum ião positivo ou negativo esquecido, construindo moléculas instáveis, impossíveis de se manterem por muito tempo porque, toda a gente sabe, a Natureza exige equilíbrio e se trouxermos para cá palmeiras e não vierem também os macacos, elas padecerão às garras de escaravelho; “A Carla só falhou uma, Cia: o cloro só pede um oxigénio e ela pôs-lhe dois; mas de resto está tudo bem, acho que vai conseguir o 3, neste período”)

- Ainda não, Carla. Só na 2ª feira. Vou acabá-los no fim-de-semana.
 

Ela seguia para as aulas ou para reuniões de professores e deixava-me na sala deles, a fazer desenhos ou a ler e algum me pegava pela mão e perguntava-me se eu queria ir com eles para o laboratório enquanto davam uma aula e lá ia eu – inevitavelmente, porque os conhecia a todos – para uma das salas do laboratório de Física ou de Química, onde passava horas a brincar com imans que empilhava para fazer garagens para os meus carrinhos, desafiando pólos de vez em quando (eram fáceis de identificar, naquelas cores azul e vermelho dos paralelepípedos pesados) só para ver se conseguia contrariar suas forças, o que, ivariavelmente, nunca conseguia; brincava com pipetas e tubos de ensaio e pompetes – como eu gostava das pompetes, que eram cor de laranja, em borracha rígida –  e eu ia à torneira encher um tubo de ensaio com água (sem cloreto de sódio) e depois passava pelos canteiros e desfazia com pilão folhas ou pétalas que punha lá para dentro, pousava-os naquelas estruturas com ocos, de forma a que não caíssem, pespegava uma pipeta lá para dentro e, mesmo sem ligar à ausência de toxicidade do conteúdo, o gozo que me dava encaixar a borracha cor de laranja, apertá-la, sentir um ventinho na cara e ver o fluindo pastoso a subir pipeta acima, ora de uma cor, ora de outra, conforme se tratassem só de daninhas ou de malmequeres ou margaridas ou papoilas, tudo crescente sem ser semeado.
 

Reencontrei a Física e a Química, com estes nomes, assim que pude e não tive qualquer dúvida em escolher Electrotecnia em vez de Têxteis, no 8º, Quimicotecnia em vez de Gestão, no 9º, área A, em vez de qualquer outra, no 10º.
 

Acompanharam-me com prazer durante vários anos e, só mais tarde e frente àqueles senhores de ar sisudo e distante que povoavam a faculdade, achei que, afinal, não gostava daquilo. Tão pouco de física e nada de química habitava aqueles doutores e eu só tentava relembrar quando íamos para a rua com aquela professora tão magnífica ver o que era um “vedor”, com uma forquilha de ramo flexível que ajudáramos a colher e uma mangueira a brotar água, sob as árvores do Liceu Camões; ou quando me esquecera de usar a pompete para tirar um pouco de ácido sulfúrico e senti todo o meu interior em chama, mas resolvi não dizer nada à professora de Química Analítica, só para ela não achar que as suas aulas sobre símbolos de “atenção” nos rótulos não tinham servido para nada.

 
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Ontem, estava eu no meu sofá, deitada de lado a ler um livro cheio de pontos de enchimento interior, quando meu indicador esquerdo se deparou com uma borbulhinha no exterior da minha coxa, também ela esquerda, e se resolveu coçá-la com a unha.

Logo no preciso instante em que unha e borbulha se cruzaram, um fino picar perpassou derme e epiderme do meu braço esquerdo, mais ou menos a meio do úmero, para onde meu olhar se dirigiu de imediato. Nada. Não havia nada ali.

Repeti o gesto dando ordem com a mente ao indicador para que, de novo, voltasse a fazer roçar unha com carne em coxa para ver no que dava.

De novo sucedeu.

Poisei livro e braço direitos e repeti o gesto uma e outra vez, sentindo sempre o mesmo.

Resolvi procurar no passado para lhe encontrar uma lógica. Tracei uma recta com o olhar e verifiquei que a distância mais curta entre aqueles dois pontos era um segmento de recta no ar e, ciente de que a transmissão de som ou calor se dá melhor pelo corpo que pelo ar, concluí que o mesmo teria de ocorrer para a transmissão de sensações.

Assim, saí da matemática, tentei sair da física e entrei na química, onde já não se verifica esta linearidade de transmissão. Molécula que espevita molécula, tenho à minha frente um ponto-coxa de origem e um outro, braço, de destino. Sem percurso definido. Teria passado por onde? Resolvera dar a volta inteira pela perna, até ao pé, para subir depois por uma qualquer artéria, remando contra a maré, até chegar ao coração e depois se evadir antebraço abaixo até que chegou momento em que resolvera sair? E teria passado no cérebro, o que tudo manda, sem minha ordem? De que lado? E que tipo de ligações utilizara? Iónicas? Covalentes? Ou agarrara-se ao Ferro e se metalizara? E onde se transformara coçar em pico? Teria passado pelo estômago e misturado com bolo, suco e enzimas ou teria sido fruto de movimentos peristálticos? Ter-se-ia imiscuído com alcatrão em vasos pulmonares e se adelgaçado para não absorver e sair fininho e de fininho por aquele ponto, sem qualquer ponto visível, para onde eu olhava e pensava: “não haveria sítio mais fácil, mais mole – certamente existe uma escala de mohs para o corpo humano -, por onde tu conseguisses sair?” Porquê escolher um que te exigiu camadas e camadas do órgão mais pesado do corpo todo?

 
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Não encontrei resposta.

Voltei à Ana Margarida de Carvalho e seu “Que importa a fúria do mar”. Voltei a dobrar páginas, que são elementos físicos de origem química e se deixam submissas aos meus dedos, e dei ordem interna para que não mais voltassem a percorrer coxa ou qualquer outra parte do meu corpo.

 
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Entre um início e seu fim há caminhos que não cabem nas aulas de física e química da minha avó ou dos meus professores do Liceu Camões.
 

Ou, quem sabe, por vezes é mais fácil regressar às fúrias de um qualquer mar, entre a Marinha Grande e o Porto e Lisboa e o Tarrafal, em linha curva, ondeada, enjoada, do que indagar sobre todos os caminhos do que sentimos. Entre um início e seu fim.