Juro por Deus que rezarei.
Garanti-o, por Deus.
Disse:
"eu própria o farei".
Fazendo-o, evito pensar que não creio.
E que odiarei ainda mais se
(mais que uma vez, mais de uma vez)
voltares a falhar.
sábado, 28 de outubro de 2017
quinta-feira, 5 de outubro de 2017
triiiiiimmm, triiiiiimmm... os que já vieram...
Triiiiiimmm,
triiiiiimmm
Seria assim que soaria, acaso ainda vivesse há uns anos, ainda recordados.
Estridentes
triiiiiimmm,
triiiiiimmm,
feitos polifónicos, difíceis, por nem recordados, de passar a preto em
branco por letras.
Triiiiiimmm,
triiiiiimmm,
estava na minha mão e o dedo não percorria o ecrã.
Triiiiiimmm,
triiiiiimmm
(o dedo, que não era um dedo qualquer, era o polegar da minha mão direita, teimava
em não percorrer ecrã de esquerda a direita para que se ouvisse voz do lado de
lá do esperto)
Triiiiiimmm,
triiiiiimmm.
Era esperto e avisava quem falaria do lado de lá. O outro, o velhinho
preto, pesado, com ficha de vários orifícios, de vários formatos, auscultador
em que se sabia, à distância, de onde vinha e por onde iriam as palavras de
longes, que hoje já não são assim tão longes, ou assim o queremos crer, não
avisava quem falaria do lado de lá. Não era sempre uma surpresa, porque havia
quem ligasse em hora e dia que, mesmos que não avisados com nome em écran, eram
mais que sabidos que viriam. Exactamente naquela hora e naquele dia.
Triiiiiimmm,
triiiiiimmm
(ele sabia. O polegar da minha mão direita. Era 2ª feira, ele estava junto
do corpo sentado em minha varanda, em amena noite de setembro, aguardava outras
palavras. Estas nem haviam insistido – apenas uma mensagem no 200, o que não
era assim tão fora do comum, vinda de
Pai
que era avisado como estando do lado de lá.
Desapareceram os
triiiiiimmm,
triiiiiimmm.
Vamos dar uns segundos ao polegar, sim?
200
“Rita. Liga-me quando puderes, sim?”
Ele sabia, o polegar da minha mão direita. O resto ainda não.
Pai
“Bom. O que esperávamos que acontecesse na Estefânia há muito, aconteceu.”
“Ok. Dá-me uns minutos e já te ligo de volta, sim?”
Sem
triiiiiimmm
triiiiiimmm.
Nenhum
triiiiiimmm,
triiiiiimmm
nos minutos que se seguiram. Uma vertigem; nada demais. Era o que
esperávamos. E aconteceu.
Pai
“Pressenti-o”, menti. Quem o sentiu, mais que pre, foi o polegar da minha
mão direita.
Há muito que ele o achava quando havia
triiiiiimmm,
triiiiiimmm
não atendidos e seguidos.
Não. Não menti.
Nenhum
triiiiiimmm,
triiiiiimmm.
Ainda não o havia sentido.
Acontecera.
Acontecera? Quando? Há muito.
Achava.
A noite não se descreve; ela escreve-se por si própria. Entre certezas,
acontecimentos e perguntas.
………..
- Tinha tudo guardado no mesmo sítio… onde está o lenço e o terço?
Juntar o fato
– a saia é bem capaz de estar apertada, mas eles já sabem como fazer –,
juntar a blusa, limpar os sapatos, encontrar collants,
- Cuecas. Ela não vai sem cuecas.
Tentar encontrar o lenço e o terço preto e branco. Não encontrar nem o
lenço nem o terço preto e branco. Encontrar outro lenço e outro terço.
(no entretanto, encher o piano de fotos guardadas algures)
Não preto e branco.
Levá-los.
Apenas com um
triiiiiimmm,
triiiiiimmm
Que se recorda, mas não ficará para a história.
……..
Acontecera?
…….
Enterro.
Plano.
Simples.
Carvalho. Sem adornos.
Cerimónia ligeira.
À tarde. Há quem venha de longe.
Antúrios brancos. Não há? Que sejam os verdes, então. Não, os vermelhos
não.
4.
E gerberas. Podem ser gerberas. Rosa.
80 cm.
Pode ficar na horizontal.
Sem foto. Apenas a cruz.
Avé Maria de Bach.
- Está aqui a roupa. Não encontrei o lenço e o terço. Quero esta foto e o
seu nome: Cia.
……..
Acontecera?
……..
Já há tanto que acontecera, não é?
……..
Encontrar amigos. Rever queridos, mesmo que não os tenhamos tratado como
tal há muitos anos. Rever queridos: dos que temos tratado como tal nos últimos
anos. Relembrar idas à Mexicana – 14 anos e foguetes; goiabada e torradas; tão
linda…; abraçar e sermos abraçados; sentidamente. Rir. Sentirem-se lágrimas nos
olhos. Não por ela. Ela já acontecera.
……..
Acontecera?
……..
Ao tempo que acontecera. Tu sabes bem que sim. Não seria por esta vez…
……..
Gerir encontros, dar outros abraços sentidos e senti-los regressar. Tomar
um chá, um café, uma torrada, comer um prego. Encontrar o que vai para o
trabalho, mas que por acaso prefere não ir “lá abaixo”; reconhecer, pelos
olhos, um louco como nós; amá-lo; relembrar a Foz do Porto; falar da(s)
Maricota(s); explicar ligações:
- É minha irmã. Não, não do Fernando Sérgio. Sim, ele tem dois netos. A
Cia? 6. Acho.
Mas acontecera.
Vários
Triiiiiimmm
Triiiiiimmm
Que não se ouviram.
……..
- Vou andando; é um momento de família.
Não entender a frase. Entrar no carro, dar boleia, acenar a quem tem
alergias e não pode ir. Hoje. Estará no 7º dia. Até lá, então.
Haverá
triiiiiimmm,
triiiiiimmm
que nos unam.
Que não por ela. Já acontecera há tanto tempo.
……….
Olhar para ele de longe e ir dar-lhe um abraço.
Descer. Tranquilamente.
Afinal, já acontecera.
……….
……….
- Sim. Tenho de passar.
Sim, tenho de estar.
Sim, tenho de sentir.
Sim, já aconteceu há anos.
Tombar sem o querer sobre a terra, sentir os dedos embrenharem-se na terra,
arranharem-na, ouvir um
- Ela é forte,
que nunca se esquecerá,
e outro
- Sim, ela é muito forte,
que nem se entenderá
………….
Sim. Finalmente, renascendo, se foi.
Como
triiiiiimmm,
triiiiiimmm,
de telefone preto, velho e pesado, com cabo enrolado, ficha de vários
formatos, em que é preciso discar para se ser ou levantar para se ouvir.
Que não mais tocará.
………….
Triiiiiimmm.
Triiiiiimmm.
………….
terça-feira, 5 de setembro de 2017
…pero que los hay los hay
Eles existem. Não creio (crendo neles) que tenhamos necessariamente de os
matar.
Mas é fundamental aprendermos a viver-nos com eles.
É verdade que não estão sempre ali ao nosso lado. Mas é importante conhecê-los
bem, sentirmo-nos à vontade para os tratar por “tu”, se possível até pelo seu
próprio nome, para os momentos em que resolvam (re)aparecer.
Quando nos visitam, há que entabular conversa amena com eles. Perguntar se
está tudo bem; qual a razão da sua visita; porquê o encontro naquela dia e,
quiçá até, tão fora de horas; recordar sentimentos passados em conjunto;
partilhar os vividos em separado. Pelo nome. Tu cá, tu lá.
Mas, acaso ele se engrandeça, não temer.
- Olha lá! Tens de ter a noção que, acaso eu resolva decidir-me a tal,
dou-te uma traulitada tal que vais desta para melhor, entendes? Já o li, já o
vi, já o ouvi e já o senti, pelo que sei exactamente como o fazer. Ah! E já o
FIZ antes!!! Tu és um MEU fantasma!
Tentar apaziguar as hostes e, se atingido um entendimento comum, dar-lhe um
beijo, um abraço forte de quebra-ossos
(ups, não encaixa aqui muito bem… mas é expressão a que já me habituei tanto que vai ficar mesmo),
atirar-lhe um “não gosto de ti, não, mas aprendi a viver-me contigo”, apagar a luz e continuar.
(ups, não encaixa aqui muito bem… mas é expressão a que já me habituei tanto que vai ficar mesmo),
atirar-lhe um “não gosto de ti, não, mas aprendi a viver-me contigo”, apagar a luz e continuar.
Não creio que tenhamos necessariamente de os matar.
Mas podemos sempre fazê-lo. Isso sim.
sexta-feira, 7 de julho de 2017
Pode até ser normal, mas…
(Este, não foi escrito hoje. Aliás, hoje tenho é saudades. Até das angústias. Parece-me algo absolutamente normal. Sei eu.)
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“É normal”, dizem todos (não assim tantos) a quem falo. Está bem, eu até
aceito que seja “normal”. E, quando olho para trás, para o “meu tempo”, até
encontro semelhanças ou pelo menos pontos de contacto. Da normalidade.
Mas, quando olho para trás, mas não assim tanto, também me recordo de
chegar “a crise do pré andar” (em mês que depende da cria) e, apesar de termos
lido algures (ou ouvido algures) que “é normal” que tenham maiores ataques de
choro ou dificuldades em adormecer, por estarem prestes a dar um passo enorme na
sua pequena vida e se sentirem frustrados, não significa que não tenhamos tido
mais paciência, que não tenhamos dado mais carinho, que não nos tenhamos
reduzido às suas dificuldades. E que não tenhamos vivido com enorme prazer o
momento em que, finalmente, o conseguiram.
“As birras dos dois anos”. São “normais” – os tipos descobrem que têm poder
e que podem usar esse poder e, claro está, que usam e abusam dele até à nossa
exaustão. Não só nossa, estou em crer, também a deles. Bem me lembro de noites,
meses largos, em que não havia nada que funcionasse - “Já para o quarto contar
até 10!”, “Já para a cama e não penses em levantar-te!”, “Se voltas a sair da
cama, a mãe sai do corredor e vai para a sala!”, “Não, o pai não vai aí, M.!
Tens de dormir!”, “O que é que estás tu aqui a fazer?”. Foi luta dura (NÃO é
igual para todos, mas nós vamos procurando/questionando, conforme nos vamos debatendo), mas conseguimos. Era “normal”, constava de Brazelton e tudo.
Mas não deixámos de fazer braço de ferro, de aconchegar antes do arranque da
birra e de aconchegar também, já adormecida. Com cuidado… não fôssemos
regressar horas de exaustão atrás.
“Não quero ir à escola!”, “Não vou à escola!”, “Dói-me a barriga… tenho de
ficar em casa. Até devo ter febre.”, “Daqui não saio!”, “Não adianta
obrigares-me! Eu NÃO vou!”, em idades díspares, em momentos díspares, mediante
ansiedades díspares – 1º dia de…, 2ªa semana depois de uma primeira em que se
sentiam fortes…, dias em que nem se entende bem a causa real da ansiedade…
Foram sempre. Por vezes quase fomos cruéis e saímos de algures de coração
apertado. Mas foram. E receberam abraços à chegada. E muitos beijos e palavras
de vitória ou mesmo de compreensão.
Portanto.
Por que razão, a partir de certa altura, passa tudo a ser “normal” e a ser
suposto não nos intrometermos? Sermos até apontados? Na verdade, sentirmos nós
uma quase “vergonha”? Já bem bastam todas as dúvidas e incertezas que nos (a
todos, a nós e a eles) assolam, não? E será este O momento crítico ou será
apenas porque o estamos a viver no presente?
Serão eles (os pré adolescentes, cada vez mais cedo adolescentes) que nos
abandonam, ou seremos nós que começamos a ausentar-nos? Por ser “normal”? Ou
será uma conjugação de ambos? Como as conjugações de astros?
Não somos amigos. Somos pais. O “normal” não deve ser absolutamente normal.
Acho eu.
quinta-feira, 6 de julho de 2017
"forgive and forget"
Em jovem (na verdade, eu era a mais nova), em aula de inglês, o tema
para discussão foi “forgive and forget”. Ao contrário de outros muitos temas e
convicções que se foram alterando nestes anos, não alterei (ainda?) o que então
discordei. Por sermos seres racionais, conseguimos, efectivamente, perdoar (os
cães, aqueles animais de que tanto gostamos e que teimam em nos serem fiéis,
não perdoam – simplesmente regressam). Aliás, até esquecemos ter perdoado. Por
sermos biológicos e com espaços no cérebro que nos ocupam mesmo não nos
apercebendo, não esquecemos, propriamente. À parte o “alemão”, infelizmente tão
conhecido de tantos (menos daqueles que realmente o vivem). Apenas não nos
recordamos com martírio. Deixa de nos aparecer em sonhos. Deixamos de palpar.
Porque, para perdoarmos, foi porque houve um percurso entre o momento em que
nos magoámos e aquele em que perdoámos. Se não tiver existido esse percurso,
apenas regressámos. Como o cão. E, tal como nos lembramos dO momento, também
lembramos o percurso. Para além do Amor. Esse não entra automaticamente aqui.
Perdoar não pode ser passe de mágica.
quarta-feira, 14 de junho de 2017
Sobre (o alargamento de) prazeres
Por mais
verdadeiros e transparentes que sejamos, nem sempre queremos que os nossos
prazeres sejam do conhecimento alargado. Não por poderem ser ilegítimos ou
atentarem a qualquer bom costume (“bom costume” é expressão que nos poderia
levar bem longe, em texto, mas não cabe tudo aqui e há que ser minimamente
assertivo ou os leitores rapidamente mudam de página; neste caso, fazem
discorrer dedo ou rato mais para baixo); apenas porque não queremos. Haverá
muitos “porquês”, possivelmente agregados “por grupos” e até alguns que são
apenas nossos. Mas não têm espaço neste texto.
Vou dar um
exemplo e tome-se apenas como exemplo: há quem retire um enorme prazer da
refutação escrita. Também com a outra, a falada, mas pode dar-se o caso de
encontrar em modo lido algo que, por diversas circunstâncias, puxe mais pela
escrita. Fá-lo quase de urgência e utiliza-o, não apenas pelo prazer de refutar
outros, mas porque, ao fazê-lo, entra em exercício de reflexão “para dentro” e
acaba também por se refutar a si próprio. É bem capaz de, por vezes, partilhar
essa reflexão. Mas, por entrar demasiado dentro de si, não o faz com a verdade,
transparência ou abrangência que lhe são sobejamente reconhecidas.
Não temos de
partilhar tudo com “todos”. Confesso que sinto arrepios quando vejo desabado em
FB um momento de sofrimento que não caiba dentro de alguma opinião “pública”.
Eu, quando sofro, nem me lembro que esta coisa existe (esta frase não é
totalmente verdadeira, mas diz respeito a momentos de sofrimento-só e
permito-me mentir descaradamente, pelo propósito do texto – muitas vezes
incoerente, bem sei).
Não vou dizer que
não é útil e que serve por vezes propósitos interessantes (bolas! Como não
suporto esta palavra; deve ser um indício escondido…). Mas, como devemos reagir
quando, no espaço de breves minutos nos deparamos com
- poemas lindíssimos
que pecam por estarem sempre associados a imagens que só servem para captar
olhos desatentos e sem ligarem sequer à palavras que as precedem
seguidos de
- notícias de violência
doméstica (seja ela numa casa, num país ou pelo Mundo)
seguidas de
- apontamento
humorístico brilhante sobre qualquer hipocrisia do mundo (eu adoro rir e penso
que rir de nós próprios é um excelente exercício)
seguido de
- fome,
necessidades extremas, necessidades que, não classificadas como extremas,
deviam ser vistas como tal; mas já nos tornámos insensíveis e já só vemos
necessidade se virmos, a acompanhá-la, barrigas inchadas, corpos de crianças
boiando, fotos de pais que choram, esventrados ou rebentados, idealmente, com
um membro para cada lado; e que tenha imagem, bem chocante, a acompanhar o
texto
seguidas de
- “veja aqui qual
a sua profissão de sonho”, onde reconhecemos publicações de tanta gente que já
muito deu trabalhando naquilo que não foi “escolhido” como seu sonho, mas onde se embrenhou, talvez até
com vocação de início, mas caindo depois nas malhas do “necessário”, do “não
posso deixar isto”, do “pois… mas tem de ser.”; infelizes naquilo que mais lhes
ocupa os dias depois dos dias
seguido de
- centenas de
mortos após tentativa de resgate de uma embarcação ao largo de…
seguidos de
- todas as receitas
da Bimby!
seguidas de
- dezenas de
mortos em ataque no…
seguidos de
- “Parabéns!” –
já nem me lembro bem da tua cara, mas esta coisa disse-me que fazias anos
seguidos de
- burlões,
chantagistas, aldrabões, potenciais vencedores em seus mundos de mentira
seguidos de
- excertos de
livros que nos tocam; que sentimos mesmo sem comentar
seguidos de
- votos de
pêsames por alguém que lutou por outros e que acaba de se ir
seguidos de
- fotos de
paisagens, pessoas ou momentos Belos; ou engraçados
seguidas de
- avisos para
concertos ou exposições ou inaugurações ou festas, que serão muito bons, em que
até nos atrevemos a premir o “com interesse”, mas em relação aos quais já
sabemos que não iremos, porque, porque, porque…
(e, se aqui
continuasse, não mais daqui sairia; não porque o mundo esteja todo aqui, longe
disso, mas porque já há tempos que venho escrevinhando sobre o tema e todos os
dias me ainda surpreendo).
Tentando não me
perder no texto, às vezes, pura e simplesmente, não queremos os outros dentro
das nossas refutações. Nem nas dores nem em todos os prazeres. Quando não temos
a quem mais recorrer e precisamos (porque é uma necessidade) escrever, criamos
Sacais. Há períodos em que os deixamos em modo de “espera”. Mas não os
esquecemos. E, quem sabe?, talvez nos contradigamos num futuro e ficamos
pensando nisso e até apostamos connosco que tal ocorrerá, porque existe lá
coisa mais saudável do que nos desafiarmos para benefício de Nós, enquanto Nós
Com Os Outros? Só Entre Nós… claro.
segunda-feira, 15 de maio de 2017
Sobre (algumas) dores
São as experiências da vida que nos vão ensinando o que dói.
Dar um chuto com o dedo mindinho do pé direito ao passar pela porta da
varanda exactamente um dia após ter dado um chuto com o dedo mindinho do pé
direito no móvel da entrada (a quem nunca aconteceu???), dói.
Dores de rins. Idealmente com febre alta que não se consegue baixar abaixo
dos 38,5º (e essa, até é a temperatura em que nos sentimos bem) e que dura uns
consecutivos, sei lá, 3, 4 dias, até que começa por fim a acalmar (em dia de
aniversário de filho; até hoje acho que foi milagre dele, até porque era data
limite de internamento). Ai dói, dói! Chiça!
Dores de rins. Mas não por infecção renal, mas sim porque, simplesmente,
estamos com o período. E temos 12 anos, 13 anos, 14 anos, 15 anos, 16 anos (não
vou aborrecer e saltarei umas décadas) e eis que lá se vão, ou, pelo menos, as
que aparecem, já nem são dignas de frase. Como doíam…
Não conseguir abrir os olhos; sentir que toda a luz é um inimigo que ataca
mesmo sem estratégia estudável e defensável; tic-tac de relógio passa a
explosão seguida de explosão um segundo depois, que nos entra pelo pulso e
salta rapidamente para a cabeça, onde se havia instalado a enxaqueca. A que
dura horas a passar e às vezes até nem passa, transforma-se apenas em moínha
por umas poucas de horas, mas nós sabemos que ela lá está. Dói e, pelo amor que
me têm, por favor vão-se! Hei-de regressar.
DENTES! Não podiam aqui faltar os dentes, claro! Já foram até alvo de um
texto por aqui. Não o dente, mas a sua alma. Quase me tornei crente! Pela dor!
Otites! Lembro-me de ver, tão claro como água, os dedos da minha mão
escarafuncharem minha orelha, meu ouvido, tímpano dentro, quase até ao cérebro,
e arrancar todas aquelas peças do meu corpo, mesmo que tal me desfigurasse,
qual Van Gogh, para todo o sempre. Com a esperança (mais tarde pensada; nunca
naqueles momentos) de haver ao menos alguém que o musicasse. Um hino à dor.
Ficar uns dias em que só conseguimos passar da cama para o sofá e do sofá
para a cama, eventualmente fazendo desvio para a casa de banho, mas em modo
90º, porque já nem sabemos identificar com precisão onde nos dói, porque ele é
a lombar, os dois joelhos, a cervical, o ombro direito, o tornozelo esquerdo, os
pulsos e cotovelos (isto, atrevidamente, mais parece uma canção do Sérgio
Godinho, mas não me apetece dizer “estou velho!”, ou, neste caso “estou velha!”,
pelo que não me debruçarei por todas as “conclusões” do tema, que até é a parte
da música de que mais gosto; pela velocidade, claro). “E onde dói, mesmo?” “Em
todo o lado, Sr. Doutor…”
Uma canelada bem dada, também dói como o raio. Acredito que uma chapada
também. Mas as que recordo, não foram em face.
Parir um filho de surpresa (possivelmente, sem surpresa poderia ter sido
semelhante, mas dá um toque especial ao texto), em terra longe, sem epidural e
este ter o cordão umbilical curto, dói para caraças (e, “caraças”, é porque
hoje estou bem educada, como já deverão ter percebido).
Parir uma filha, sem surpresa, cesariana, mas com epidural a ser eficaz
apenas num dos lados do corpo (neste caso, recordo bem, apenas do lado esquerdo
– aliás, até ver a costura, fiquei sempre a achar que a minha filha tinha toda
ela saído apenas do meu lado direito do corpo), não dói tanto como caraças, mas
aproxima-se de outras máscaras. Ao menos, lembramo-las. E conseguimos encaixar
o prazer no meio.
………………………………………………………………………………………………………………………………………………………
São exemplos de dores. Aquelas de que me lembrei esta noite de 15 de Maio,
Primavera de 2017.
………………………………………………………………………………………………………………………………………………………
Na verdade, comecei por outras…
Mas o texto já vai dorido demais…
segunda-feira, 3 de abril de 2017
"1 de Abril, dia das mentiras" ou "To Believe or not to Believe"
O facebook tem uma particularidade
que pode ser, genericamente, assumida como positiva, que é a de nos alertar
para aniversários de “amigos”. Em face dos alertas, reagimos depois como bem
entendemos. Podemos, como exemplos:
- Estás parvo, pá?! Mas acaso eu
preciso de ti para recordar esta data? Soa quase a insulto!
- Eh, pá, que fixe! Estou sempre a
confundir o 11 com o 13! Eu já sei que é junto a um feriado, mas nunca me
lembro bem de qual (também, este mês tem tantos!) ou se é antes ou depois!
Obrigada, FB!
- Oh, que raios! E agora o que faço
a este? Mando mensagem, publico no mural, SMS ou telefone? E o que
escrevo/digo? Não gosto de não personificar!...
- bah…
Hoje é dia 1 de Abril e há um que
parece afronta, outro que é “bah” e um terceiro indeterminado.
Resolvo desejar, com o toque de
personificação que encontro mais à mão:
“Muitos Parabéns!!! E que o dia não
seja replecto de mentiras!”,
e mais qualquer coisinha, em
despedida.
E, num posterior, vindo do inesperado,
recebo o seguinte, de entre outras coisinhas, como sejam o agradecer e tecer
comentários futebolísticos (no 1 de abril de 2017, jogaram Benfica e Porto, o
que pode parecer de somenos importância, mas que espevita memórias de um Benfica-Farense
de há tantos anos atrás e que foi tema de telefonema de aniversário não “bah…”,
só afronta, e que, desde então, tem sido sempre assunto, nestes dias 1 de abril
que se seguiram):
“Nem me apercebi de mentiras mas
estas também são úteis! Os sonhos e os desejos são mentiras boas, só algumas
serão verdades…”.
E esta deu que pensar.
A dicotomia bem mais complexa das
mentiras e das verdades, foi em que minha mente ficou deambulando.
E, de repente, ela voou para frases,
perguntas, constatações, vidas, poesia, com as quais se foi construindo:
De facto, quantos
os sonhos ou desejos que já percepcionados como futuras mentiras, vivemos com
prazer como sendo “as mais puras verdades”, enquanto não nos forçamos a acordar?
Enquanto não passam?
“Uma mulher que
diz a sua verdadeira idade não é digna de confiança”, “roubada” (nunca
confirmei, mas, para mim, sempre foi verdade, em todos os momentos em que a
ouvi) a Oscar Wilde
Nunca minto. E,
se o faço, é certamente por Amor. E sou sempre Livro. Basta ler.
Nunca?
Nunca.
Sempre?
Para sempre.
“Que não seja
imortal, posto que é chama;
mas que seja
infinito enquanto dure”,
do Soneto de Fidelidade
de Vinícius, tantas vezes ouvido, tantas vezes absorvido, incluindo aquela
introdução que o M. sempre faz quando o canta. A absolutamente incongruente, se
nunca vivida.
“Compañeros de
historia,
Tomando en cuenta
lo implacable
Que debe ser la
verdad, quisiera preguntar
Me urge tanto,
¿Qué debiera
decir, qué fronteras debo respetar?
Si alguien roba
comida
Y después da la
vida, ¿qué hacer?
¿Hasta donde
debemos practicar las verdades?
¿Hasta donde
sabemos?
Que escriban,
pues, la historia, su historia
Los hombres del
playa girón”,
do Sílvio, em
Playa Girón; desafiando História e história, questionando limites, de forma
urgente; o direito de perguntar qual a verdade a considerar, pelo menos quando
não temos de ser Historiadores.
………………………………………………………………………………………
Recentemente, vi um bocadinho da minha
vida confundido com uma verdade só visualizada de um lado, o qual eu nem sequer
conhecia (ou conheço). Tenho tido alguma dificuldade em lidar com tal. E, agora
me apercebo, quase claramente, que, não tanto pela verdade ou pela mentira, mas
pelo propósito aos gestos associados.
Prefiro sempre a verdade: é mais
tranquila, apaziguadora para nós próprios; não tem perna curta, o que a faz
passar muito mais despercebida, podendo tal parecer que não mereceu tanto cuidado,
mas tal é positivo porque significa que as nossas atenções estão concentradas
no que é bem mais importante, como o sentir, o ouvir, o ver, o saborear (em
aroma ou paladar). A verdade é simples, mesmo considerando todas as suas
complexidades. E isso joga bem com quem já só usa parte do baralho, porque o
restante deixou propositadamente ficar na posse do jogador que faz batota à
vista de todos (o que não é mentira, já que, sendo à vista de todos, é apenas
um jogo; sem nunca pretender enganar ninguém).
Sonhar ou desejar (mentiras ou
verdades “to be”) é verdadeiro nos momentos em que acontece. Não atingem
outros, porque nossos: os sonhos ou os desejos. Quando muito, nos “to be” já
ocorridos, podemos olhar para trás e verificar que nos mentíamos. Mas
acreditávamos que não, na altura, pelo que nos fazíamos levar por verdades que,
então, víamos. Ou sentíamos ou ouvíamos ou saboreávamos (em aroma ou
paladar). Porventura, magoámo-nos. Mas só depois. Não enquanto era verdade.
Se revirmos os sete mortais, não
encontraremos a mentira.
Nos dez que mandam, também não.
Encontramos a ira ou a adulteração.
Entre outros, claro. Caberiam mais aqui, mas são os que resolvo destacar.
Recentemente (como referi algures
umas linhas atrás e, entretanto, me perdi), por ira, ou outro qualquer pecado, indo
contra o mandamento de não adulteração, fui brutalmente invadida por uma interpretação
de uma verdade que até era mentira. Mentira, por ter sido sonho (ou desejo) de
um “not to be”. Verdade, porque o senti, ouvi (tão baixinho…), vi e saboreei
(em aroma ou paladar), de facto.
What
is the question, then?
Julgava que o sentia por ser mentira.
Mas, hoje, sei que não. Essa pode ser, dentro do seu pecado e desmandamento,
tão bonita como uma verdade.
domingo, 12 de março de 2017
Sobre impactos, choques e outros embates. Sobre marcas
Nunca sabemos quando acaso ou
premeditação fazem nossa vida cruzar-se com a vida de outro alguém, o impacto
que tal terá.
Há choques que são animais.
Absolutamente irracionais, como já escrevi um, embora não em Sacal e sim em
Contas. Quantidade de sentimento independente de simples massa e velocidade.
Outros, construídos. Em tempo maior
ou menor, fazendo deles um continuado de efeitos, dos colaterais e dos que marcam sempre
a direito.
Alguns, imaginados. O que faz com
que pertençam à cabeça de onde nasceram. Dependentes.
De outros, só nos apercebemos da verdadeira
magnitude do seu embate, quando se vão.
Impacto pode ser explosivo,
instantâneo, feito BUUUMMM!, com sempre mais, pelo menos uma, do que zero
casualties.
OK.
Ou pode ser erodido, lento,
sobe maré, desce maré,
sobe maré, desce maré,
arrasta-se, inerte,
rebola, inerte,
desfaz-se, inerte,
nunca inerte. Móvel,
transformando-se. Demarcando-se e marcando.
A distracção pode ser remédio ou
cancro. Mas, se de novo atentos, por ausência ou por choque, recordamos,
lembramos, porque marcados.
Por impactos, choques ou embates de uma vida que se cruzou com a nossa. Num ou mais marcados tempos.
Luz da presença
A partir do momento em que assumimos
(por nos obrigarmos a olhar) que estamos perante factos mais que comprovados
diariamente (como por exemplo quando já não conseguimos deixar de a acender,
independentemente da semana), deveríamos deixar de agir indefinidamente e
tornarmo-nos mais definitivos. Como exemplo (e na sequência de parêntesis
anterior), devíamos deixar de chamar aquela luz que colocamos no (ou junto ao)
quarto das crianças de luz de presença e passar a ser a luz da presença.
Apesar de ser um exercício racional,
não significa que seja fácil mudar assim uma designação de tantos anos, mesmo
que estejamos falando apenas de uma luz.
E, assim, se comprova a importância
das palavras e de como pode ser diferente (ou difícil) designar definidamente algo que até hoje tinha sempre sido indefinido.
segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017
Rua Mário Soares
Dois miúdos de bicicleta interpelaram-me na minha rua e
perguntaram:
- A Rua Mário Soares? É sempre em frente, não é? Falta
muito?
Primeiro sorri, depois localizei-me geograficamente. Descoberto
o mistério, ia a falar, quando um deles, o de olhos mais espertos, achou que
devia ser mais preciso, para me ajudar a responder:
- Bombas de mau cheiro, é o que queremos! Tem lá papelarias,
não é?
Não sei como consegui conter-me.
- É sempre por esta rua, sim. Um pouquinho mais à frente. Tem
papelarias, mas não sei se hoje estão abertas.
- Boa! Bora!
E montaram de novo. Ainda disse, mas não sei se ouviram:
- Só que se chama Morais! Morais Soares!
sábado, 25 de fevereiro de 2017
Lugar 30, fila 25, zona 2
Lembro-me do concerto que vimos
juntos, como se tivesse sido ontem. O que é um perfeito absurdo, porque se
tivesse sido ontem, teria sido em dia 24 de fevereiro e eu lembro-me muito bem
que foi na primavera que o vimos.
Cheguei em passo (como sempre) apressado
da saída que me parecera mais próxima, do metro de São Sebastião. Tinha
conseguido, ainda, vir por dentro do parque, apesar das barreiras que já
estavam colocadas em alguns acessos. Tinha vislumbrado, e registado para
comemorar memória passada, cantinho de tantas horas passadas anos e anos atrás –
reencontrado anos após, mesmo que tantas outras vezes entrepassadas por ali.
O passo apressado permitiu o tempo
de um último cigarro antes de entrar.
- Gira!,
disseste,
tão baixinho, que ninguém ouviu.
- Não contava que viesses à ópera de
calças de ganga e, confesso-me, batoteiro e visual, mesmo nem sempre envergando óculos, esperava ver tuas pernas envoltas por collants translúcidos e pés
em sapatinho (de Gretel, que fosse) e não em bota já desgastada nas pontas e que nem deixa ver meia que envolve teus pés gregos.
não deixaste de dizer, mas
tão baixinho, que ninguém ouviu,
(Efectivamente, era a única feminina
que estava de calças de ganga já ruças e tudo, naquele Grande Auditório; até a
criança que se sentava dois ssentos ao lado do lugar 30, da fila 25, zona 2,
trazia um vestido xadrez, com collants azuis e sapatinho-de-vir-à-ópera a
condizer).
- À direita, em baixo.
Lugares 29 e 30, fila 25, zona 2,
eram mesmo em baixo. E à direita e à direita.
Já havia pessoas sentadas na 25.
- Com licença. Com licença.
Mais ou menos a meio da fila. Os
lugares eram bons. Eu tinha escolhido o lugar 29; por ser ímpar, para variar. O
31 era ocupado pela mãe da menina de vestido xadrez com collants azuis e sapatinho-de-vir-à-ópera
a condizer e ela havia aproveitado o 30 para colocar casacos (apesar de já ser
primavera).
- Pode deixar estar,
disse eu.
Tu estranhaste a minha frase, mas lá
te arranjaste no lugar 30, da fila 25, zona 2, como conseguiste. Admito que
ficaste um pouco engraçado, sentado com os joelhos rente à cara, rabo encaixado
entre casacos (a que se juntara o meu) e cachecóis e carteiras naquele assento
que teimava em não cumprir a função de rebatível que lhe era suposta. Sorri
pelo canto da boca, mas fingi olhar para o palco em preparação, até porque, se
disseste algo foi
tão baixinho, que ninguém ouviu
E, apesar de até haver mais lugares
vagos, pensei para mim mesma que se não estivesses confortável, o dirias. Com
nível ajustado à minha capacidade de audição. E sempre era tão cómico ver-te em
posição de ginasta já fora de idade, ali ao meu lado!
Começou a entrar a orquestra.
Depois o maestro – que, viríamos a
constatar, era bem mais que isso.
E, música!
Pouco depois, o coro. Ficavam um
pouco estranhos, ali em cima, atrás de todos aqueles riscos ao alto. Estranhei
que não brincasses com o tema; ou talvez o tenhas feito, mas
tão baixinho, que ninguém ouviu.
O maestro era alto. Recém-grisalho e
também usava óculos. Enérgico e expressivo. Ora abraçava a orquestra, ora
acarinhava o primeiro violino. Ora convidava ao vigor dos fagotes (um preto,
outro escarlate), ora estirava, corda a corda, bem devagarinho para não quebrar,
grupo de contrabaixos.
O maestro era bem mais que um
maestro. Porque alternava em tal função com a de tocar um “pianinho” (na minha
cabeça, chamei-lhe pianinho, porque
tinha teclas
imagino que, dentro, tinha cordas
não soava a cravo,
tinha, no máximo, 1m de largura,
mas duas fiadas de teclas,
não percebo nada de instrumentos
musicais e, percebendo tu, talvez to tenha perguntado,
tão baixinho, que ninguém ouviu,
talvez mo tenhas dito ao ouvido,
mas,
tão baixinho, que ninguém ouviu).
E eis que surge Galatea! A (inevitável)
Mulher! Linda! Alta! Voz sonante! Vestido verde seco, de seda brilhante,
ondulante, comprido até ao chão; cinto do mesmo verde seco brilhante e
ondulante, abraçando-lhe largura menor e enlaçando-a por detrás; alças largas,
cruzadas nas costas, até aos ombros; despida, no que sobrava.
- És gira. E que bem que ficarias
com este vestido…,
bichanas-me ao ouvido,
tão baixinho, que ninguém ouviu.
“Não dava para mim; não tenho
soutien que se ocultasse e tais decotes não aguentam minhas mamas.”
Acis é pastor e seu canto suave e
sem falsete. Mas tem cabelo comprido. Não gosto de cabelos compridos e embirro
com seu tom.
1º acto passado num instante. Aquele
que termina com a, mais que certa, felicidade eterna.
………………………………………………………………………………………………………….
No intervalo, de novo, estranhaste minha
distância. Interminável tempo ao telefone e cigarro, casa de banho, café,
- Pode pôr-me um pouco de água fria
no café, por favor? Está mesmo quente!
Góing!
………………………………………………………………………………………………………….
2º acto. A mãe do lugar 31, fila 25,
zona 2 continua a manter casacos no teu assento. E eu também. E o assento que
teima em não rebater… Mas tão caricato que ficas tu… A meus cantos de olhos,
pelo menos.
Não sei se pelo café com água fria,
se pelo barítono (Monstro Polifemo fazia sua primeira intervenção), senti-me sentir
mais.
Não sei se pelo que bebeste no
intervalo (eu, de facto, nem te vi no intervalo; mas havia quem aproveitasse
para uns copos de vinho, como aquele senhor em cuja mesa estava cinzeiro que
utilizei na esplanada-jardim; talvez o tenhas feito, também), se pelo maior
sentir-meu, se por Galatea em seu vestido-primavera, afoitavas-te. Tão
batoteiro que tu és! E como gostas de bricar com as palavras! Bem baixinho, em meu ouvido direito. Aquele que dava para
o lugar 30, da fila 25, zona 2.
Tão baixinho, que ninguém ouvia.
“Infortunados amantes, esqueçam o
vosso sonho!”
- Se não têm fortuna, o que valem
como amantes? Mais vale sonhar com outros! Sonhas comigo? Dou-te beijos em
pálpebras antes de adormeceres…
tão baixinho, que ninguém ouvia.
“…tonitruante…”
- Deixa-me ser teu toni; para dentro
de ti trovejar. Deixa-me ouvir-te, sussurrando em meu ouvido: “Tóni, ensurdece-me
com teus trovões! Cega-me com teus relâmpagos!!”
tão baixinho, que ninguém ouvia.
E o maestro, em seus gestos:
- Parece um tipo que eu conhecia que
jogava ténis com raquete de ping-pong porque tinha coutos de braços por ter
sido encurralado por moto-ceifadeira, na tentativa de salvar papoilas para
oferecer a uma menina da escola… Salvou umas quantas; vermelhas como seus braços,
que jorravam.
tão baixinho, que ninguém ouvia.
E, de novo, sobre o maestro,
- Coitado; será que lhe falta o ar?
Tenho aqui a minha bomba e cortisona, caso ele precise. Achas que vá lá? E a
ti, falta-te o ar, giraça de calças de ganga e botas-já-mais-que-gastas?
tão baixinho, que ninguém ouvia.
“…gigante…”
- Quando fumava, era disto! Felizmente
deixei. Não tinha tamanho para tal! Desse,
tamanho. Tenho tantos outros tamanhos para tu descobrires…
tão baixinho, que ninguém ouvia.
E o drama, próprio de acto final,
continuava. E Monstro Polifemo com sua sensual voz de barítono matava Acis (e
seu rabo de cavalo, para minha, não explicitada satisfação – admito, torcia por
Monstro…), esmagado sob um rochedo que do nada caía.
- És mesmo gira, sabias?
tão baixinho, que ninguém ouvia.
E, em cima, sombras do coro bailavam
em modo monstrinhos de Polifemo, mas mudos, sem barítono. Orquestra e “pianinho”,
no entanto.
“… amoras…”
e outros frutos.
- Se não tivermos cuidado ao colher,
picamo-nos, porque as silvas gostam muito de se entrelaçar em amoras. Deixas-me
ser teu apelido, minha amora primaveril?
tão baixinho, que ninguém ouvia.
Polifemo, o Monstro, envergava manto
dourado sobre ombros. Grave e cavernoso; maduro e viril.
- De acentos não percebo nada. Como
o provam meus joelhos junto à boca, que quase não me deixam fazer ouvir. Quando
pequeno, brincava em conventos, como se cavernas fossem. Amadureci neles; ao
ponto de cair. Envirilas-te comigo? Num 3º acto?,
tão baixinho, que ninguém ouvia.
“bebe sangue de copos…”
- Ainda se fosse de copas… das XL…
tão baixinho, que ninguém ouvia.
- Apesar de aparentares alguma
loucura (calças de ganga em ópera?, onde já se viu?), és mesmo muito gira,
sabias?
tão baixinho, que ninguém ouvia.
“Sofrer é o destino de quem ama.”
- Isso são os parvos! Fazer batota!
Isso sim, é destino!!! Batutas-me?
A dor que acontece depois da morte. O
Deus que nasce depois da morte. Por ela.
Bem alto, para todos ouvirem.
E eis que o fundo se abre. E se
misturam cénicas com plantadas. Aparecem quietas, como se soubessem que haviam
entrado em cena. A cena. A derradeira. A dos véus negros envergados. Não
resistem a vento primaveril de Oeste que as abraça num sentido só. E deixam-se
ir com ele, sem nunca tombarem, porém. Dois pombos que aproveitam a rara oportunidade
de serem mais amados que odiados. É o auge, o endeusamento, a despedida; todos
eles (cénicos ou apanhados) o sabem.
E palmas. E palmas. E dirigidas. E
barítono que recebe corpos de pé e braços de Galatea e seu vestido verde-seda-despido
comprido de alças cruzadas, que puxam maestro-não-só-maestro para o mais alto
palco para as receber. As merecidas.
Estranhas que me levante do lugar
29, fila 25, zona 2 de forma apressada e que (quase) te atropele em despedida
apressada
- Com licença. Com licença.
Collants azuis e sapatinhos de ópera
a condizer já cobertos por um dos casacos que haviam permanecido no lugar 30,
fila 25, zona 2, não se retraem assim tanto, devido ao sono, mas são tão
pequenos que por lá passo com facilidade.
“Combinei jantar às 21.30 e já é
tarde.”
- Batota…,
dizes,
tão baixinho, que ninguém ouviu,
mas já estou em coxia, ainda batendo
palmas e dizendo “Espectacular”, mas tu não ouves, só lês, porque, apesar de
tão alto, já ninguém ouvia.
………………………………………………………………………………………………………….
Dirigi-me, em passo (como sempre)
apressado até à entrada que me parecera mais próxima do metro de São Sebastião.
Era outra.
“A caminho”,
para o grupo.
Entrei na carruagem mais próxima e
sentei-me em coxia de lugares a quatro. À direita falavam duas raparigas em
russo (ou similar; para leste da Holanda, não distingo); à esquerda, do lado de
lá do corredor, duas sexagenárias, em português-brasil.
Juro-te; pelo que me é mais sagrado.
Olhei em frente e vi-o. (Re)batido, roçado, mas igual:
o lugar 30, da fila 25, da zona 2.
Tão vazio, que mais ninguém o viu.
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