sábado, 28 de outubro de 2017

Desconheço-te, mas por amor sou capaz de te me dirigir

Juro por Deus que rezarei.
Garanti-o, por Deus.
Disse:
"eu própria o farei".
Fazendo-o, evito pensar que não creio.
E que odiarei ainda mais se
(mais que uma vez, mais de uma vez)
voltares a falhar.

quinta-feira, 5 de outubro de 2017

triiiiiimmm, triiiiiimmm... os que já vieram...

Triiiiiimmm,
triiiiiimmm
Seria assim que soaria, acaso ainda vivesse há uns anos, ainda recordados.
Estridentes
triiiiiimmm,
triiiiiimmm,
feitos polifónicos, difíceis, por nem recordados, de passar a preto em branco por letras.
Triiiiiimmm,
triiiiiimmm,
estava na minha mão e o dedo não percorria o ecrã.
Triiiiiimmm,
triiiiiimmm
(o dedo, que não era um dedo qualquer, era o polegar da minha mão direita, teimava em não percorrer ecrã de esquerda a direita para que se ouvisse voz do lado de lá do esperto)
Triiiiiimmm,
triiiiiimmm.
Era esperto e avisava quem falaria do lado de lá. O outro, o velhinho preto, pesado, com ficha de vários orifícios, de vários formatos, auscultador em que se sabia, à distância, de onde vinha e por onde iriam as palavras de longes, que hoje já não são assim tão longes, ou assim o queremos crer, não avisava quem falaria do lado de lá. Não era sempre uma surpresa, porque havia quem ligasse em hora e dia que, mesmos que não avisados com nome em écran, eram mais que sabidos que viriam. Exactamente naquela hora e naquele dia.
Triiiiiimmm,
triiiiiimmm
(ele sabia. O polegar da minha mão direita. Era 2ª feira, ele estava junto do corpo sentado em minha varanda, em amena noite de setembro, aguardava outras palavras. Estas nem haviam insistido – apenas uma mensagem no 200, o que não era assim tão fora do comum, vinda de
Pai
que era avisado como estando do lado de lá.
Desapareceram os
triiiiiimmm,
triiiiiimmm.
Vamos dar uns segundos ao polegar, sim?
200
“Rita. Liga-me quando puderes, sim?”
Ele sabia, o polegar da minha mão direita. O resto ainda não.
Pai
“Bom. O que esperávamos que acontecesse na Estefânia há muito, aconteceu.”
“Ok. Dá-me uns minutos e já te ligo de volta, sim?”
Sem
triiiiiimmm
triiiiiimmm.
Nenhum
triiiiiimmm,
triiiiiimmm
nos minutos que se seguiram. Uma vertigem; nada demais. Era o que esperávamos. E aconteceu.
Pai
“Pressenti-o”, menti. Quem o sentiu, mais que pre, foi o polegar da minha mão direita.
Há muito que ele o achava quando havia
triiiiiimmm,
triiiiiimmm
não atendidos e seguidos.
Não. Não menti.
Nenhum
triiiiiimmm,
triiiiiimmm.
Ainda não o havia sentido.
Acontecera.
Acontecera? Quando? Há muito.
Achava.
A noite não se descreve; ela escreve-se por si própria. Entre certezas, acontecimentos e perguntas.
………..
- Tinha tudo guardado no mesmo sítio… onde está o lenço e o terço?
Juntar o fato
– a saia é bem capaz de estar apertada, mas eles já sabem como fazer –,
juntar a blusa, limpar os sapatos, encontrar collants,
- Cuecas. Ela não vai sem cuecas.
Tentar encontrar o lenço e o terço preto e branco. Não encontrar nem o lenço nem o terço preto e branco. Encontrar outro lenço e outro terço.
(no entretanto, encher o piano de fotos guardadas algures)
Não preto e branco.
Levá-los.
Apenas com um
triiiiiimmm,
triiiiiimmm
Que se recorda, mas não ficará para a história.
……..
Acontecera?
…….
Enterro.
Plano.
Simples.
Carvalho. Sem adornos.
Cerimónia ligeira.
À tarde. Há quem venha de longe.
Antúrios brancos. Não há? Que sejam os verdes, então. Não, os vermelhos não.
4.
E gerberas. Podem ser gerberas. Rosa.
80 cm.
Pode ficar na horizontal.
Sem foto. Apenas a cruz.
Avé Maria de Bach.
- Está aqui a roupa. Não encontrei o lenço e o terço. Quero esta foto e o seu nome: Cia.
……..
Acontecera?
……..
Já há tanto que acontecera, não é?
……..
Encontrar amigos. Rever queridos, mesmo que não os tenhamos tratado como tal há muitos anos. Rever queridos: dos que temos tratado como tal nos últimos anos. Relembrar idas à Mexicana – 14 anos e foguetes; goiabada e torradas; tão linda…; abraçar e sermos abraçados; sentidamente. Rir. Sentirem-se lágrimas nos olhos. Não por ela. Ela já acontecera.
……..
Acontecera?
……..
Ao tempo que acontecera. Tu sabes bem que sim. Não seria por esta vez…
……..
Gerir encontros, dar outros abraços sentidos e senti-los regressar. Tomar um chá, um café, uma torrada, comer um prego. Encontrar o que vai para o trabalho, mas que por acaso prefere não ir “lá abaixo”; reconhecer, pelos olhos, um louco como nós; amá-lo; relembrar a Foz do Porto; falar da(s) Maricota(s); explicar ligações:
- É minha irmã. Não, não do Fernando Sérgio. Sim, ele tem dois netos. A Cia? 6. Acho.
Mas acontecera.
Vários
Triiiiiimmm
Triiiiiimmm
Que não se ouviram.
……..
- Vou andando; é um momento de família.
Não entender a frase. Entrar no carro, dar boleia, acenar a quem tem alergias e não pode ir. Hoje. Estará no 7º dia. Até lá, então.
Haverá
triiiiiimmm,
triiiiiimmm
que nos unam.
Que não por ela. Já acontecera há tanto tempo.
……….
Olhar para ele de longe e ir dar-lhe um abraço.
Descer. Tranquilamente.
Afinal, já acontecera.
……….
……….
- Sim. Tenho de passar.
Sim, tenho de estar.
Sim, tenho de sentir.
Sim, já aconteceu há anos.
Tombar sem o querer sobre a terra, sentir os dedos embrenharem-se na terra, arranharem-na, ouvir um
- Ela é forte,
que nunca se esquecerá,
e outro
- Sim, ela é muito forte,
que nem se entenderá
………….
Sim. Finalmente, renascendo, se foi.
Como
triiiiiimmm,
triiiiiimmm,
de telefone preto, velho e pesado, com cabo enrolado, ficha de vários formatos, em que é preciso discar para se ser ou levantar para se ouvir.
Que não mais tocará.
………….
Triiiiiimmm.
Triiiiiimmm.

………….

terça-feira, 5 de setembro de 2017

…pero que los hay los hay


Eles existem. Não creio (crendo neles) que tenhamos necessariamente de os matar.
Mas é fundamental aprendermos a viver-nos com eles.
É verdade que não estão sempre ali ao nosso lado. Mas é importante conhecê-los bem, sentirmo-nos à vontade para os tratar por “tu”, se possível até pelo seu próprio nome, para os momentos em que resolvam (re)aparecer.
Quando nos visitam, há que entabular conversa amena com eles. Perguntar se está tudo bem; qual a razão da sua visita; porquê o encontro naquela dia e, quiçá até, tão fora de horas; recordar sentimentos passados em conjunto; partilhar os vividos em separado. Pelo nome. Tu cá, tu lá.
Mas, acaso ele se engrandeça, não temer.
- Olha lá! Tens de ter a noção que, acaso eu resolva decidir-me a tal, dou-te uma traulitada tal que vais desta para melhor, entendes? Já o li, já o vi, já o ouvi e já o senti, pelo que sei exactamente como o fazer. Ah! E já o FIZ antes!!! Tu és um MEU fantasma!
Tentar apaziguar as hostes e, se atingido um entendimento comum, dar-lhe um beijo, um abraço forte de quebra-ossos
(ups, não encaixa aqui muito bem… mas é expressão a que já me habituei tanto que vai ficar mesmo),
atirar-lhe um “não gosto de ti, não, mas aprendi a viver-me contigo”, apagar a luz e continuar.

Não creio que tenhamos necessariamente de os matar. Mas podemos sempre fazê-lo. Isso sim.

sexta-feira, 7 de julho de 2017

Pode até ser normal, mas…


(Este, não foi escrito hoje. Aliás, hoje tenho é saudades. Até das angústias. Parece-me algo absolutamente normal. Sei eu.)

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“É normal”, dizem todos (não assim tantos) a quem falo. Está bem, eu até aceito que seja “normal”. E, quando olho para trás, para o “meu tempo”, até encontro semelhanças ou pelo menos pontos de contacto. Da normalidade.
Mas, quando olho para trás, mas não assim tanto, também me recordo de chegar “a crise do pré andar” (em mês que depende da cria) e, apesar de termos lido algures (ou ouvido algures) que “é normal” que tenham maiores ataques de choro ou dificuldades em adormecer, por estarem prestes a dar um passo enorme na sua pequena vida e se sentirem frustrados, não significa que não tenhamos tido mais paciência, que não tenhamos dado mais carinho, que não nos tenhamos reduzido às suas dificuldades. E que não tenhamos vivido com enorme prazer o momento em que, finalmente, o conseguiram.
“As birras dos dois anos”. São “normais” – os tipos descobrem que têm poder e que podem usar esse poder e, claro está, que usam e abusam dele até à nossa exaustão. Não só nossa, estou em crer, também a deles. Bem me lembro de noites, meses largos, em que não havia nada que funcionasse - “Já para o quarto contar até 10!”, “Já para a cama e não penses em levantar-te!”, “Se voltas a sair da cama, a mãe sai do corredor e vai para a sala!”, “Não, o pai não vai aí, M.! Tens de dormir!”, “O que é que estás tu aqui a fazer?”. Foi luta dura (NÃO é igual para todos, mas nós vamos procurando/questionando, conforme nos vamos debatendo), mas conseguimos. Era “normal”, constava de Brazelton e tudo. Mas não deixámos de fazer braço de ferro, de aconchegar antes do arranque da birra e de aconchegar também, já adormecida. Com cuidado… não fôssemos regressar horas de exaustão atrás.
“Não quero ir à escola!”, “Não vou à escola!”, “Dói-me a barriga… tenho de ficar em casa. Até devo ter febre.”, “Daqui não saio!”, “Não adianta obrigares-me! Eu NÃO vou!”, em idades díspares, em momentos díspares, mediante ansiedades díspares – 1º dia de…, 2ªa semana depois de uma primeira em que se sentiam fortes…, dias em que nem se entende bem a causa real da ansiedade… Foram sempre. Por vezes quase fomos cruéis e saímos de algures de coração apertado. Mas foram. E receberam abraços à chegada. E muitos beijos e palavras de vitória ou mesmo de compreensão.
Portanto.
Por que razão, a partir de certa altura, passa tudo a ser “normal” e a ser suposto não nos intrometermos? Sermos até apontados? Na verdade, sentirmos nós uma quase “vergonha”? Já bem bastam todas as dúvidas e incertezas que nos (a todos, a nós e a eles) assolam, não? E será este O momento crítico ou será apenas porque o estamos a viver no presente?
Serão eles (os pré adolescentes, cada vez mais cedo adolescentes) que nos abandonam, ou seremos nós que começamos a ausentar-nos? Por ser “normal”? Ou será uma conjugação de ambos? Como as conjugações de astros?
Não somos amigos. Somos pais. O “normal” não deve ser absolutamente normal.

Acho eu.

quinta-feira, 6 de julho de 2017

"forgive and forget"


Em jovem (na verdade, eu era a mais nova), em aula de inglês, o tema para discussão foi “forgive and forget”. Ao contrário de outros muitos temas e convicções que se foram alterando nestes anos, não alterei (ainda?) o que então discordei. Por sermos seres racionais, conseguimos, efectivamente, perdoar (os cães, aqueles animais de que tanto gostamos e que teimam em nos serem fiéis, não perdoam – simplesmente regressam). Aliás, até esquecemos ter perdoado. Por sermos biológicos e com espaços no cérebro que nos ocupam mesmo não nos apercebendo, não esquecemos, propriamente. À parte o “alemão”, infelizmente tão conhecido de tantos (menos daqueles que realmente o vivem). Apenas não nos recordamos com martírio. Deixa de nos aparecer em sonhos. Deixamos de palpar. Porque, para perdoarmos, foi porque houve um percurso entre o momento em que nos magoámos e aquele em que perdoámos. Se não tiver existido esse percurso, apenas regressámos. Como o cão. E, tal como nos lembramos dO momento, também lembramos o percurso. Para além do Amor. Esse não entra automaticamente aqui.
Perdoar não pode ser passe de mágica.

quarta-feira, 14 de junho de 2017

Sobre (o alargamento de) prazeres


Por mais verdadeiros e transparentes que sejamos, nem sempre queremos que os nossos prazeres sejam do conhecimento alargado. Não por poderem ser ilegítimos ou atentarem a qualquer bom costume (“bom costume” é expressão que nos poderia levar bem longe, em texto, mas não cabe tudo aqui e há que ser minimamente assertivo ou os leitores rapidamente mudam de página; neste caso, fazem discorrer dedo ou rato mais para baixo); apenas porque não queremos. Haverá muitos “porquês”, possivelmente agregados “por grupos” e até alguns que são apenas nossos. Mas não têm espaço neste texto.
Vou dar um exemplo e tome-se apenas como exemplo: há quem retire um enorme prazer da refutação escrita. Também com a outra, a falada, mas pode dar-se o caso de encontrar em modo lido algo que, por diversas circunstâncias, puxe mais pela escrita. Fá-lo quase de urgência e utiliza-o, não apenas pelo prazer de refutar outros, mas porque, ao fazê-lo, entra em exercício de reflexão “para dentro” e acaba também por se refutar a si próprio. É bem capaz de, por vezes, partilhar essa reflexão. Mas, por entrar demasiado dentro de si, não o faz com a verdade, transparência ou abrangência que lhe são sobejamente reconhecidas.
Não temos de partilhar tudo com “todos”. Confesso que sinto arrepios quando vejo desabado em FB um momento de sofrimento que não caiba dentro de alguma opinião “pública”. Eu, quando sofro, nem me lembro que esta coisa existe (esta frase não é totalmente verdadeira, mas diz respeito a momentos de sofrimento-só e permito-me mentir descaradamente, pelo propósito do texto – muitas vezes incoerente, bem sei).
Não vou dizer que não é útil e que serve por vezes propósitos interessantes (bolas! Como não suporto esta palavra; deve ser um indício escondido…). Mas, como devemos reagir quando, no espaço de breves minutos nos deparamos com
- poemas lindíssimos que pecam por estarem sempre associados a imagens que só servem para captar olhos desatentos e sem ligarem sequer à palavras que as precedem
seguidos de
- notícias de violência doméstica (seja ela numa casa, num país ou pelo Mundo)
seguidas de
- apontamento humorístico brilhante sobre qualquer hipocrisia do mundo (eu adoro rir e penso que rir de nós próprios é um excelente exercício)
seguido de
- fome, necessidades extremas, necessidades que, não classificadas como extremas, deviam ser vistas como tal; mas já nos tornámos insensíveis e já só vemos necessidade se virmos, a acompanhá-la, barrigas inchadas, corpos de crianças boiando, fotos de pais que choram, esventrados ou rebentados, idealmente, com um membro para cada lado; e que tenha imagem, bem chocante, a acompanhar o texto
seguidas de
- “veja aqui qual a sua profissão de sonho”, onde reconhecemos publicações de tanta gente que já muito deu trabalhando naquilo que não foi “escolhido” como  seu sonho, mas onde se embrenhou, talvez até com vocação de início, mas caindo depois nas malhas do “necessário”, do “não posso deixar isto”, do “pois… mas tem de ser.”; infelizes naquilo que mais lhes ocupa os dias depois dos dias
seguido de
- centenas de mortos após tentativa de resgate de uma embarcação ao largo de…
seguidos de
- todas as receitas da Bimby!
seguidas de
- dezenas de mortos em ataque no…
seguidos de
- “Parabéns!” – já nem me lembro bem da tua cara, mas esta coisa disse-me que fazias anos
seguidos de
- burlões, chantagistas, aldrabões, potenciais vencedores em seus mundos de mentira
seguidos de
- excertos de livros que nos tocam; que sentimos mesmo sem comentar
seguidos de
- votos de pêsames por alguém que lutou por outros e que acaba de se ir
seguidos de
- fotos de paisagens, pessoas ou momentos Belos; ou engraçados
seguidas de
- avisos para concertos ou exposições ou inaugurações ou festas, que serão muito bons, em que até nos atrevemos a premir o “com interesse”, mas em relação aos quais já sabemos que não iremos, porque, porque, porque…
(e, se aqui continuasse, não mais daqui sairia; não porque o mundo esteja todo aqui, longe disso, mas porque já há tempos que venho escrevinhando sobre o tema e todos os dias me ainda surpreendo).

Tentando não me perder no texto, às vezes, pura e simplesmente, não queremos os outros dentro das nossas refutações. Nem nas dores nem em todos os prazeres. Quando não temos a quem mais recorrer e precisamos (porque é uma necessidade) escrever, criamos Sacais. Há períodos em que os deixamos em modo de “espera”. Mas não os esquecemos. E, quem sabe?, talvez nos contradigamos num futuro e ficamos pensando nisso e até apostamos connosco que tal ocorrerá, porque existe lá coisa mais saudável do que nos desafiarmos para benefício de Nós, enquanto Nós Com Os Outros? Só Entre Nós… claro.

segunda-feira, 15 de maio de 2017

Sobre (algumas) dores


São as experiências da vida que nos vão ensinando o que dói.
Dar um chuto com o dedo mindinho do pé direito ao passar pela porta da varanda exactamente um dia após ter dado um chuto com o dedo mindinho do pé direito no móvel da entrada (a quem nunca aconteceu???), dói.
Dores de rins. Idealmente com febre alta que não se consegue baixar abaixo dos 38,5º (e essa, até é a temperatura em que nos sentimos bem) e que dura uns consecutivos, sei lá, 3, 4 dias, até que começa por fim a acalmar (em dia de aniversário de filho; até hoje acho que foi milagre dele, até porque era data limite de internamento). Ai dói, dói! Chiça!
Dores de rins. Mas não por infecção renal, mas sim porque, simplesmente, estamos com o período. E temos 12 anos, 13 anos, 14 anos, 15 anos, 16 anos (não vou aborrecer e saltarei umas décadas) e eis que lá se vão, ou, pelo menos, as que aparecem, já nem são dignas de frase. Como doíam…
Não conseguir abrir os olhos; sentir que toda a luz é um inimigo que ataca mesmo sem estratégia estudável e defensável; tic-tac de relógio passa a explosão seguida de explosão um segundo depois, que nos entra pelo pulso e salta rapidamente para a cabeça, onde se havia instalado a enxaqueca. A que dura horas a passar e às vezes até nem passa, transforma-se apenas em moínha por umas poucas de horas, mas nós sabemos que ela lá está. Dói e, pelo amor que me têm, por favor vão-se! Hei-de regressar.
DENTES! Não podiam aqui faltar os dentes, claro! Já foram até alvo de um texto por aqui. Não o dente, mas a sua alma. Quase me tornei crente! Pela dor!
Otites! Lembro-me de ver, tão claro como água, os dedos da minha mão escarafuncharem minha orelha, meu ouvido, tímpano dentro, quase até ao cérebro, e arrancar todas aquelas peças do meu corpo, mesmo que tal me desfigurasse, qual Van Gogh, para todo o sempre. Com a esperança (mais tarde pensada; nunca naqueles momentos) de haver ao menos alguém que o musicasse. Um hino à dor.
Ficar uns dias em que só conseguimos passar da cama para o sofá e do sofá para a cama, eventualmente fazendo desvio para a casa de banho, mas em modo 90º, porque já nem sabemos identificar com precisão onde nos dói, porque ele é a lombar, os dois joelhos, a cervical, o ombro direito, o tornozelo esquerdo, os pulsos e cotovelos (isto, atrevidamente, mais parece uma canção do Sérgio Godinho, mas não me apetece dizer “estou velho!”, ou, neste caso “estou velha!”, pelo que não me debruçarei por todas as “conclusões” do tema, que até é a parte da música de que mais gosto; pela velocidade, claro). “E onde dói, mesmo?” “Em todo o lado, Sr. Doutor…”
Uma canelada bem dada, também dói como o raio. Acredito que uma chapada também. Mas as que recordo, não foram em face.
Parir um filho de surpresa (possivelmente, sem surpresa poderia ter sido semelhante, mas dá um toque especial ao texto), em terra longe, sem epidural e este ter o cordão umbilical curto, dói para caraças (e, “caraças”, é porque hoje estou bem educada, como já deverão ter percebido).
Parir uma filha, sem surpresa, cesariana, mas com epidural a ser eficaz apenas num dos lados do corpo (neste caso, recordo bem, apenas do lado esquerdo – aliás, até ver a costura, fiquei sempre a achar que a minha filha tinha toda ela saído apenas do meu lado direito do corpo), não dói tanto como caraças, mas aproxima-se de outras máscaras. Ao menos, lembramo-las. E conseguimos encaixar o prazer no meio.
………………………………………………………………………………………………………………………………………………………
São exemplos de dores. Aquelas de que me lembrei esta noite de 15 de Maio, Primavera de 2017.
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Na verdade, comecei por outras…
Mas o texto já vai dorido demais…


segunda-feira, 3 de abril de 2017

"1 de Abril, dia das mentiras" ou "To Believe or not to Believe"


O facebook tem uma particularidade que pode ser, genericamente, assumida como positiva, que é a de nos alertar para aniversários de “amigos”. Em face dos alertas, reagimos depois como bem entendemos. Podemos, como exemplos:
- Estás parvo, pá?! Mas acaso eu preciso de ti para recordar esta data? Soa quase a insulto!
- Eh, pá, que fixe! Estou sempre a confundir o 11 com o 13! Eu já sei que é junto a um feriado, mas nunca me lembro bem de qual (também, este mês tem tantos!) ou se é antes ou depois! Obrigada, FB!
- Oh, que raios! E agora o que faço a este? Mando mensagem, publico no mural, SMS ou telefone? E o que escrevo/digo? Não gosto de não personificar!...
- bah…
Hoje é dia 1 de Abril e há um que parece afronta, outro que é “bah” e um terceiro indeterminado.
Resolvo desejar, com o toque de personificação que encontro mais à mão:
“Muitos Parabéns!!! E que o dia não seja replecto de mentiras!”,
e mais qualquer coisinha, em despedida.
E, num posterior, vindo do inesperado, recebo o seguinte, de entre outras coisinhas, como sejam o agradecer e tecer comentários futebolísticos (no 1 de abril de 2017, jogaram Benfica e Porto, o que pode parecer de somenos importância, mas que espevita memórias de um Benfica-Farense de há tantos anos atrás e que foi tema de telefonema de aniversário não “bah…”, só afronta, e que, desde então, tem sido sempre assunto, nestes dias 1 de abril que se seguiram):
“Nem me apercebi de mentiras mas estas também são úteis! Os sonhos e os desejos são mentiras boas, só algumas serão verdades…”.
E esta deu que pensar.
A dicotomia bem mais complexa das mentiras e das verdades, foi em que minha mente ficou deambulando.
E, de repente, ela voou para frases, perguntas, constatações, vidas, poesia, com as quais se foi construindo:

De facto, quantos os sonhos ou desejos que já percepcionados como futuras mentiras, vivemos com prazer como sendo “as mais puras verdades”, enquanto não nos forçamos a acordar? Enquanto não passam?

“Uma mulher que diz a sua verdadeira idade não é digna de confiança”, “roubada” (nunca confirmei, mas, para mim, sempre foi verdade, em todos os momentos em que a ouvi) a Oscar Wilde

Nunca minto. E, se o faço, é certamente por Amor. E sou sempre Livro. Basta ler.

Nunca?
Nunca.

Sempre?
Para sempre.

“Que não seja imortal, posto que é chama;
mas que seja infinito enquanto dure”,
do Soneto de Fidelidade de Vinícius, tantas vezes ouvido, tantas vezes absorvido, incluindo aquela introdução que o M. sempre faz quando o canta. A absolutamente incongruente, se nunca vivida.

“Compañeros de historia,
Tomando en cuenta lo implacable
Que debe ser la verdad, quisiera preguntar
Me urge tanto,
¿Qué debiera decir, qué fronteras debo respetar?
Si alguien roba comida
Y después da la vida, ¿qué hacer?
¿Hasta donde debemos practicar las verdades?
¿Hasta donde sabemos?
Que escriban, pues, la historia, su historia
Los hombres del playa girón”,
do Sílvio, em Playa Girón; desafiando História e história, questionando limites, de forma urgente; o direito de perguntar qual a verdade a considerar, pelo menos quando não temos de ser Historiadores.

………………………………………………………………………………………

Recentemente, vi um bocadinho da minha vida confundido com uma verdade só visualizada de um lado, o qual eu nem sequer conhecia (ou conheço). Tenho tido alguma dificuldade em lidar com tal. E, agora me apercebo, quase claramente, que, não tanto pela verdade ou pela mentira, mas pelo propósito aos gestos associados.
Prefiro sempre a verdade: é mais tranquila, apaziguadora para nós próprios; não tem perna curta, o que a faz passar muito mais despercebida, podendo tal parecer que não mereceu tanto cuidado, mas tal é positivo porque significa que as nossas atenções estão concentradas no que é bem mais importante, como o sentir, o ouvir, o ver, o saborear (em aroma ou paladar). A verdade é simples, mesmo considerando todas as suas complexidades. E isso joga bem com quem já só usa parte do baralho, porque o restante deixou propositadamente ficar na posse do jogador que faz batota à vista de todos (o que não é mentira, já que, sendo à vista de todos, é apenas um jogo; sem nunca pretender enganar ninguém).
Sonhar ou desejar (mentiras ou verdades “to be”) é verdadeiro nos momentos em que acontece. Não atingem outros, porque nossos: os sonhos ou os desejos. Quando muito, nos “to be” já ocorridos, podemos olhar para trás e verificar que nos mentíamos. Mas acreditávamos que não, na altura, pelo que nos fazíamos levar por verdades que, então, víamos. Ou sentíamos ou ouvíamos ou saboreávamos (em aroma ou paladar). Porventura, magoámo-nos. Mas só depois. Não enquanto era verdade.
Se revirmos os sete mortais, não encontraremos a mentira.
Nos dez que mandam, também não.
Encontramos a ira ou a adulteração. Entre outros, claro. Caberiam mais aqui, mas são os que resolvo destacar.
Recentemente (como referi algures umas linhas atrás e, entretanto, me perdi), por ira, ou outro qualquer pecado, indo contra o mandamento de não adulteração, fui brutalmente invadida por uma interpretação de uma verdade que até era mentira. Mentira, por ter sido sonho (ou desejo) de um “not to be”. Verdade, porque o senti, ouvi (tão baixinho…), vi e saboreei (em aroma ou paladar), de facto.
What is the question, then?
Julgava que o sentia por ser mentira. Mas, hoje, sei que não. Essa pode ser, dentro do seu pecado e desmandamento, tão bonita como uma verdade.

(e os meus filhos que não me ouçam… terão tempo de lá chegar)

domingo, 12 de março de 2017

Sobre impactos, choques e outros embates. Sobre marcas

Nunca sabemos quando acaso ou premeditação fazem nossa vida cruzar-se com a vida de outro alguém, o impacto que tal terá.
Há choques que são animais. Absolutamente irracionais, como já escrevi um, embora não em Sacal e sim em Contas. Quantidade de sentimento independente de simples massa e velocidade.
Outros, construídos. Em tempo maior ou menor, fazendo deles um continuado de efeitos, dos colaterais e dos que marcam sempre a direito.
Alguns, imaginados. O que faz com que pertençam à cabeça de onde nasceram. Dependentes.
De outros, só nos apercebemos da verdadeira magnitude do seu embate, quando se vão.
Impacto pode ser explosivo, instantâneo, feito BUUUMMM!, com sempre mais, pelo menos uma, do que zero casualties.
OK.
Ou pode ser erodido, lento,
sobe maré, desce maré,
sobe maré, desce maré,
arrasta-se, inerte,
rebola, inerte,
desfaz-se, inerte,
nunca inerte. Móvel, transformando-se. Demarcando-se e marcando.
A distracção pode ser remédio ou cancro. Mas, se de novo atentos, por ausência ou por choque, recordamos, lembramos, porque marcados.
Por impactos, choques ou embates de uma vida que se cruzou com a nossa. Num ou mais marcados tempos.

Luz da presença


A partir do momento em que assumimos (por nos obrigarmos a olhar) que estamos perante factos mais que comprovados diariamente (como por exemplo quando já não conseguimos deixar de a acender, independentemente da semana), deveríamos deixar de agir indefinidamente e tornarmo-nos mais definitivos. Como exemplo (e na sequência de parêntesis anterior), devíamos deixar de chamar aquela luz que colocamos no (ou junto ao) quarto das crianças de luz de presença e passar a ser a luz da presença.
Apesar de ser um exercício racional, não significa que seja fácil mudar assim uma designação de tantos anos, mesmo que estejamos falando apenas de uma luz.

E, assim, se comprova a importância das palavras e de como pode ser diferente (ou difícil) designar definidamente algo que até hoje tinha sempre sido indefinido.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

Rua Mário Soares

Dois miúdos de bicicleta interpelaram-me na minha rua e perguntaram:
- A Rua Mário Soares? É sempre em frente, não é? Falta muito?
Primeiro sorri, depois localizei-me geograficamente. Descoberto o mistério, ia a falar, quando um deles, o de olhos mais espertos, achou que devia ser mais preciso, para me ajudar a responder:
- Bombas de mau cheiro, é o que queremos! Tem lá papelarias, não é?
Não sei como consegui conter-me.
- É sempre por esta rua, sim. Um pouquinho mais à frente. Tem papelarias, mas não sei se hoje estão abertas.
- Boa! Bora!
E montaram de novo. Ainda disse, mas não sei se ouviram:

- Só que se chama Morais! Morais Soares!

sábado, 25 de fevereiro de 2017

Lugar 30, fila 25, zona 2

Lembro-me do concerto que vimos juntos, como se tivesse sido ontem. O que é um perfeito absurdo, porque se tivesse sido ontem, teria sido em dia 24 de fevereiro e eu lembro-me muito bem que foi na primavera que o vimos.
Cheguei em passo (como sempre) apressado da saída que me parecera mais próxima, do metro de São Sebastião. Tinha conseguido, ainda, vir por dentro do parque, apesar das barreiras que já estavam colocadas em alguns acessos. Tinha vislumbrado, e registado para comemorar memória passada, cantinho de tantas horas passadas anos e anos atrás – reencontrado anos após, mesmo que tantas outras vezes entrepassadas por ali.
O passo apressado permitiu o tempo de um último cigarro antes de entrar.
- Gira!,
disseste,
tão baixinho, que ninguém ouviu.
- Não contava que viesses à ópera de calças de ganga e, confesso-me, batoteiro e visual, mesmo nem sempre envergando óculos, esperava ver tuas pernas envoltas por collants translúcidos e pés em sapatinho (de Gretel, que fosse) e não em bota já desgastada nas pontas e que nem deixa ver meia que envolve teus pés gregos.
não deixaste de dizer, mas
tão baixinho, que ninguém ouviu,
(Efectivamente, era a única feminina que estava de calças de ganga já ruças e tudo, naquele Grande Auditório; até a criança que se sentava dois ssentos ao lado do lugar 30, da fila 25, zona 2, trazia um vestido xadrez, com collants azuis e sapatinho-de-vir-à-ópera a condizer).
- À direita, em baixo.
Lugares 29 e 30, fila 25, zona 2, eram mesmo em baixo. E à direita e à direita.
Já havia pessoas sentadas na 25.
- Com licença. Com licença.
Mais ou menos a meio da fila. Os lugares eram bons. Eu tinha escolhido o lugar 29; por ser ímpar, para variar. O 31 era ocupado pela mãe da menina de vestido xadrez com collants azuis e sapatinho-de-vir-à-ópera a condizer e ela havia aproveitado o 30 para colocar casacos (apesar de já ser primavera).
- Pode deixar estar,
disse eu.
Tu estranhaste a minha frase, mas lá te arranjaste no lugar 30, da fila 25, zona 2, como conseguiste. Admito que ficaste um pouco engraçado, sentado com os joelhos rente à cara, rabo encaixado entre casacos (a que se juntara o meu) e cachecóis e carteiras naquele assento que teimava em não cumprir a função de rebatível que lhe era suposta. Sorri pelo canto da boca, mas fingi olhar para o palco em preparação, até porque, se disseste algo foi
tão baixinho, que ninguém ouviu
E, apesar de até haver mais lugares vagos, pensei para mim mesma que se não estivesses confortável, o dirias. Com nível ajustado à minha capacidade de audição. E sempre era tão cómico ver-te em posição de ginasta já fora de idade, ali ao meu lado!
Começou a entrar a orquestra.
Depois o maestro – que, viríamos a constatar, era bem mais que isso.
E, música!
Pouco depois, o coro. Ficavam um pouco estranhos, ali em cima, atrás de todos aqueles riscos ao alto. Estranhei que não brincasses com o tema; ou talvez o tenhas feito, mas
tão baixinho, que ninguém ouviu.
O maestro era alto. Recém-grisalho e também usava óculos. Enérgico e expressivo. Ora abraçava a orquestra, ora acarinhava o primeiro violino. Ora convidava ao vigor dos fagotes (um preto, outro escarlate), ora estirava, corda a corda, bem devagarinho para não quebrar, grupo de contrabaixos.
O maestro era bem mais que um maestro. Porque alternava em tal função com a de tocar um “pianinho” (na minha cabeça, chamei-lhe pianinho, porque
tinha teclas
imagino que, dentro, tinha cordas
não soava a cravo,
tinha, no máximo, 1m de largura,
mas duas fiadas de teclas,
não percebo nada de instrumentos musicais e, percebendo tu, talvez to tenha perguntado,
tão baixinho, que ninguém ouviu,
talvez mo tenhas dito ao ouvido, mas,
tão baixinho, que ninguém ouviu).
E eis que surge Galatea! A (inevitável) Mulher! Linda! Alta! Voz sonante! Vestido verde seco, de seda brilhante, ondulante, comprido até ao chão; cinto do mesmo verde seco brilhante e ondulante, abraçando-lhe largura menor e enlaçando-a por detrás; alças largas, cruzadas nas costas, até aos ombros; despida, no que sobrava.
- És gira. E que bem que ficarias com este vestido…,
bichanas-me ao ouvido,
tão baixinho, que ninguém ouviu.
“Não dava para mim; não tenho soutien que se ocultasse e tais decotes não aguentam minhas mamas.”
Acis é pastor e seu canto suave e sem falsete. Mas tem cabelo comprido. Não gosto de cabelos compridos e embirro com seu tom.
1º acto passado num instante. Aquele que termina com a, mais que certa, felicidade eterna.
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No intervalo, de novo, estranhaste minha distância. Interminável tempo ao telefone e cigarro, casa de banho, café,
- Pode pôr-me um pouco de água fria no café, por favor? Está mesmo quente!
Góing!
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2º acto. A mãe do lugar 31, fila 25, zona 2 continua a manter casacos no teu assento. E eu também. E o assento que teima em não rebater… Mas tão caricato que ficas tu… A meus cantos de olhos, pelo menos.
Não sei se pelo café com água fria, se pelo barítono (Monstro Polifemo fazia sua primeira intervenção), senti-me sentir mais.
Não sei se pelo que bebeste no intervalo (eu, de facto, nem te vi no intervalo; mas havia quem aproveitasse para uns copos de vinho, como aquele senhor em cuja mesa estava cinzeiro que utilizei na esplanada-jardim; talvez o tenhas feito, também), se pelo maior sentir-meu, se por Galatea em seu vestido-primavera, afoitavas-te. Tão batoteiro que tu és! E como gostas de bricar com as palavras! Bem baixinho, em meu ouvido direito. Aquele que dava para o lugar 30, da fila 25, zona 2.
Tão baixinho, que ninguém ouvia.
“Infortunados amantes, esqueçam o vosso sonho!”
- Se não têm fortuna, o que valem como amantes? Mais vale sonhar com outros! Sonhas comigo? Dou-te beijos em pálpebras antes de adormeceres…
tão baixinho, que ninguém ouvia.
“…tonitruante…”
- Deixa-me ser teu toni; para dentro de ti trovejar. Deixa-me ouvir-te, sussurrando em meu ouvido: “Tóni, ensurdece-me com teus trovões! Cega-me com teus relâmpagos!!”
tão baixinho, que ninguém ouvia.
E o maestro, em seus gestos:
- Parece um tipo que eu conhecia que jogava ténis com raquete de ping-pong porque tinha coutos de braços por ter sido encurralado por moto-ceifadeira, na tentativa de salvar papoilas para oferecer a uma menina da escola… Salvou umas quantas; vermelhas como seus braços, que jorravam.
tão baixinho, que ninguém ouvia.
E, de novo, sobre o maestro,
- Coitado; será que lhe falta o ar? Tenho aqui a minha bomba e cortisona, caso ele precise. Achas que vá lá? E a ti, falta-te o ar, giraça de calças de ganga e botas-já-mais-que-gastas?
tão baixinho, que ninguém ouvia.
“…gigante…”
- Quando fumava, era disto! Felizmente deixei. Não tinha tamanho para tal! Desse, tamanho. Tenho tantos outros tamanhos para tu descobrires…
tão baixinho, que ninguém ouvia.
E o drama, próprio de acto final, continuava. E Monstro Polifemo com sua sensual voz de barítono matava Acis (e seu rabo de cavalo, para minha, não explicitada satisfação – admito, torcia por Monstro…), esmagado sob um rochedo que do nada caía.
- És mesmo gira, sabias?
tão baixinho, que ninguém ouvia.
E, em cima, sombras do coro bailavam em modo monstrinhos de Polifemo, mas mudos, sem barítono. Orquestra e “pianinho”, no entanto.
“… amoras…”
e outros frutos.
- Se não tivermos cuidado ao colher, picamo-nos, porque as silvas gostam muito de se entrelaçar em amoras. Deixas-me ser teu apelido, minha amora primaveril?
tão baixinho, que ninguém ouvia.
Polifemo, o Monstro, envergava manto dourado sobre ombros. Grave e cavernoso; maduro e viril.
- De acentos não percebo nada. Como o provam meus joelhos junto à boca, que quase não me deixam fazer ouvir. Quando pequeno, brincava em conventos, como se cavernas fossem. Amadureci neles; ao ponto de cair. Envirilas-te comigo? Num 3º acto?,
tão baixinho, que ninguém ouvia.
“bebe sangue de copos…”
- Ainda se fosse de copas… das XL…
tão baixinho, que ninguém ouvia.
- Apesar de aparentares alguma loucura (calças de ganga em ópera?, onde já se viu?), és mesmo muito gira, sabias?
tão baixinho, que ninguém ouvia.
“Sofrer é o destino de quem ama.”
- Isso são os parvos! Fazer batota! Isso sim, é destino!!! Batutas-me?
A dor que acontece depois da morte. O Deus que nasce depois da morte. Por ela.
Bem alto, para todos ouvirem.
E eis que o fundo se abre. E se misturam cénicas com plantadas. Aparecem quietas, como se soubessem que haviam entrado em cena. A cena. A derradeira. A dos véus negros envergados. Não resistem a vento primaveril de Oeste que as abraça num sentido só. E deixam-se ir com ele, sem nunca tombarem, porém. Dois pombos que aproveitam a rara oportunidade de serem mais amados que odiados. É o auge, o endeusamento, a despedida; todos eles (cénicos ou apanhados) o sabem.
E palmas. E palmas. E dirigidas. E barítono que recebe corpos de pé e braços de Galatea e seu vestido verde-seda-despido comprido de alças cruzadas, que puxam maestro-não-só-maestro para o mais alto palco para as receber. As merecidas.
Estranhas que me levante do lugar 29, fila 25, zona 2 de forma apressada e que (quase) te atropele em despedida apressada
- Com licença. Com licença.
Collants azuis e sapatinhos de ópera a condizer já cobertos por um dos casacos que haviam permanecido no lugar 30, fila 25, zona 2, não se retraem assim tanto, devido ao sono, mas são tão pequenos que por lá passo com facilidade.
“Combinei jantar às 21.30 e já é tarde.”
- Batota…,
dizes,
tão baixinho, que ninguém ouviu,
mas já estou em coxia, ainda batendo palmas e dizendo “Espectacular”, mas tu não ouves, só lês, porque, apesar de
tão alto, já ninguém ouvia.
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Dirigi-me, em passo (como sempre) apressado até à entrada que me parecera mais próxima do metro de São Sebastião. Era outra.
“A caminho”,
para o grupo.
Entrei na carruagem mais próxima e sentei-me em coxia de lugares a quatro. À direita falavam duas raparigas em russo (ou similar; para leste da Holanda, não distingo); à esquerda, do lado de lá do corredor, duas sexagenárias, em português-brasil.
Juro-te; pelo que me é mais sagrado. Olhei em frente e vi-o. (Re)batido, roçado, mas igual:
o lugar 30, da fila 25, da zona 2.

Tão vazio, que mais ninguém o viu.