Dinner for two:
bolinhos de alheira, ameijoas da fajã à bulhão pato e prego de atum em bolo
do caco. Tinto da casa que acompanha. E fica. Era muito. Não estamos habituadas
a jantares a duas, ali.Palavras giram em torno de trabalho, de planos de férias, crianças, adaptações, amores e quotidianos. Poetas no Povo fazem girar as suas em torno do tema desse dia – Poesia e Amor. A várias vozes. Com algum humor, mas dois textos que ficam e se me sobressaem:
Casamento
“Na riqueza e na pobreza, no melhor e no pior, até que a morte vos separe.”Perfeitamente.
Sempre cumpri o que assinei.
Portanto estrangulei-a e fui-me embora.
Noivado
Estendeu os braços carinhosamente e avançou, de mãos abertas e cheias de
ternura.- És tu Ernesto, meu amor?
Não era. Era o Bernardo.
Isso não os impediu de terem muitos meninos e não serem felizes.
É o que faz a miopia.
(já vos falei daqueles períodos que acontecem de vez em quando em que ficamos
que tempos sem nos cruzarmos com algo e, num repente, esse mesmo algo
cruza-se connosco em cada esquina. Assim tem sido Mário-Henrique Leiria).
………………………………………………………………………………………………………………………………………………….
Dinner for one:
bacalhau assado desfiado com batatas a murro – restos do almoço de Sábado
-, regado com tinto lá de casa. Que fica. Não há palavras que se ouçam; das de
voz alta. Dessas, só as que brotam da TV e que se deixam estar enquanto outras,
das de voz calada, acompanham a tarefa, feita em gestos lentos, de verificação,
organização e separação da roupa da Maria em:"serve" – dobrar e por no armário;
"é para devolver à Mariana" – dobrar e por no saco com imagens verdes;
"é para dar à Clara" – dobrar e por no saco laranja.
Já não tenho tanta “mão” para ver o que serve e o que não serve – cresceu tanto a minha princesa… - pelo que me auxilio nas medidas recebidas em mensagem:
"do pipi ao calcanhar" – 48 cm;
"dos ombros ao rabo" – 43cm.
Sacos arrumados e preparados; com roupa e palavras de memórias. Que um dia voltarão a ser medidas, dobradas, alteradas no tempo e no que invocam – outros Natais, outros aniversários, outros primeiros dias de aulas, outras aulas de ginástica, outros verões, outras poças de água.
………………………………………………………………………………………………………………………………………………….
Dinner for two:
picanha e lombinho de porco grelhados. Com feijão preto, o primeiro. Um
jarrinho e meio de tinto da casa e uma seven-up fresquinha.Palavras que se esclarecem em torno de trabalho e que entram, depois, para dentro das casas de vidas. Despejam-se na toalha da mesa, em forma de plantas desenhadas com primor de não-arquitectos para a melhor percepção do lado de lá, mas com pressa de se formarem, de se fecharem paredes, de se entreabrirem portas, para passar às explicações, às descrições. Cada uma onde vivêramos. À vez. Todas em Lisboa ou relativamente perto. Os quartos (ou o quarto), as salas, as cozinhas, as casas de banho, os escritórios, as varandas ou a ausência de varandas. Agarrados às casas, dentro das plantas, estão os pais, os irmãos, as avós, os companheiros, os filhos e os animais de estimação. Também estão as dificuldades, a falta de espaço, o excesso de espaço, as vistas, as escadas, os esconsos, os pormenores, o tempo. As mudanças. As portas que se fecham. Uma nova planta que nasce em traços apressados entre a caneta e a toalha de papel sobre a mesa.
………………………………………………………………………………………………………………………………………………….
Dinner for two:
ovos rotos com farinheira, morcela com compota de cebola, alheira com ovo
de codorniz. Jarro de tinto da casa e gasosa com gelo. É muito, mas já são
22:00 e estamos cheios de fome.Conversamos sobre morte e sobre doença. Sobre a necessidade de ocupação da mente e do corpo; e de se ter de ter algum no bolso. Nem que seja para pagar saúde. A saúde está muito cara...
Discutimos Física – materiais que absorvem cor, capacidade de reflexão, gravação a laser.
Descascamos o que víramos, ouvíramos, sentíramos nas últimas 3 horas: o surreal, louco, inesperado de um concerto de piano com Cabo Verde, Serge Gainsbourg, Madredeus, tocados por aquela mulher de saia de veludo vermelho que se erguia com o vento, naquele piano de madeira clara, sobre aquela carrinha de caixa aberta pelas ruas (ainda) movimentadas da Graça, desviando-se dos eléctricos, invocando surpresa, espanto e admiração por quem passava e se detinha; a exposição no 1º piso da galeria de imagens impressas em acrílico sobre a dor da A., sobre doença, sobre luto, sobre morte e sobre memórias e ginásticas circenses, como dito pela própria, na rua, em jeito de poema, acompanhada pelo mesmo piano da saia de veludo vermelho esvoaçante; o fado vadio, o fado lisboeta, as palavras que nos fazem ver esta cidade, brotadas da boca desdentada do velho que bebia tinto entre temas; uma prenda para um filho que era uma escultura em movimento, hipnotizante, era um concerto, um jogo de luz e sombras, um movimento de “mobile” colorido, com flores, aviões, aparas de lápis, pirilampos mágicos, sob palco de piano e assentos escuros, também eles circum-navegando, recortados na parede em contra luz, cravados em móvel de madeira antigo e escolhido e tratado com alma.
………………………………………………………………………………………………………………………………………………….
Dinner for eight:
(regresso ao início da semana, mas sem a poesia no cartaz)bolinhos de alheira e ameijoas da fajã que se repetem. Mais: peixinhos da horta, atum braseado com feijão frade, ovos mexidos com farinheira, camarões ao alhinho, bacalhau à Braz, salada de polvo; tudo submerso em tinto da casa e imperiais, que não ficaram; foram sendo substituídos.
Somos oito e somos mulheres. Brindamos. “Com o vinho da casa”. Precipitamo-nos em nós. Nas Mulheres. No amor e no sexo; nos encontros, nos “dates” e nos supermercados; no “sexual harassment” e nos pedestais; na culpa e nas divergências; na Ciência e nas “soft skills”; no “multitasking”, no “onetasking” e no “untasking”; no escrevermos e no que escondemos e no que expomos; no “ballet”, na dança, no violino e no “karate”; nas apresentações e nas representações; no ensino e na formação e na desformatação; nos pais sobre os filhos e nos filhos sobre os pais; nas separações e nos reencontros; na música, nos festivais, no corrermos (mesmo que não só para apanhar o autocarro) e no superarmo-nos; no superar os outros e em sermos ambiciosas; “bossy” versus assertivo; nas descriminações e nas diferenças culturais; no ocidente e no oriente; no Brasil, nos Estados Unidos, em Cabo Verde, em Moçambique; e em Portugal, o nosso Portugal; nos amigos e nas nossas casas e nos nossos homens; nos sucessos e no prazer; no peso da História, na revolução do Povo e na revolução da Mulher; em capulanas, vestidos, saltos muito altos, tapetes e beliches; em aprender, aprender, aprender; e trabalhar, trabalhar, trabalhar; e viver, viver, viver; na saudade e na coragem; na felicidade e na euforia; e no tinto.
A noite termina de manhã bem entrada. Em casa, depois de casa.
………………………………………………………………………………………………………………………………………………….
Dinner for one:
tosta de frango.Caipirinha.
Sem tinto.
Palavras?
Só estas.
Em mais um Sábado de mais uma semana que se despede por entre os prédios da Rua de Dona Estefânia.
Semana sim.