Lembro-me do concerto que vimos
juntos, como se tivesse sido ontem. O que é um perfeito absurdo, porque se
tivesse sido ontem, teria sido em dia 24 de fevereiro e eu lembro-me muito bem
que foi na primavera que o vimos.
Cheguei em passo (como sempre) apressado
da saída que me parecera mais próxima, do metro de São Sebastião. Tinha
conseguido, ainda, vir por dentro do parque, apesar das barreiras que já
estavam colocadas em alguns acessos. Tinha vislumbrado, e registado para
comemorar memória passada, cantinho de tantas horas passadas anos e anos atrás –
reencontrado anos após, mesmo que tantas outras vezes entrepassadas por ali.
O passo apressado permitiu o tempo
de um último cigarro antes de entrar.
- Gira!,
disseste,
tão baixinho, que ninguém ouviu.
- Não contava que viesses à ópera de
calças de ganga e, confesso-me, batoteiro e visual, mesmo nem sempre envergando óculos, esperava ver tuas pernas envoltas por collants translúcidos e pés
em sapatinho (de Gretel, que fosse) e não em bota já desgastada nas pontas e que nem deixa ver meia que envolve teus pés gregos.
não deixaste de dizer, mas
tão baixinho, que ninguém ouviu,
(Efectivamente, era a única feminina
que estava de calças de ganga já ruças e tudo, naquele Grande Auditório; até a
criança que se sentava dois ssentos ao lado do lugar 30, da fila 25, zona 2,
trazia um vestido xadrez, com collants azuis e sapatinho-de-vir-à-ópera a
condizer).
- À direita, em baixo.
Lugares 29 e 30, fila 25, zona 2,
eram mesmo em baixo. E à direita e à direita.
Já havia pessoas sentadas na 25.
- Com licença. Com licença.
Mais ou menos a meio da fila. Os
lugares eram bons. Eu tinha escolhido o lugar 29; por ser ímpar, para variar. O
31 era ocupado pela mãe da menina de vestido xadrez com collants azuis e sapatinho-de-vir-à-ópera
a condizer e ela havia aproveitado o 30 para colocar casacos (apesar de já ser
primavera).
- Pode deixar estar,
disse eu.
Tu estranhaste a minha frase, mas lá
te arranjaste no lugar 30, da fila 25, zona 2, como conseguiste. Admito que
ficaste um pouco engraçado, sentado com os joelhos rente à cara, rabo encaixado
entre casacos (a que se juntara o meu) e cachecóis e carteiras naquele assento
que teimava em não cumprir a função de rebatível que lhe era suposta. Sorri
pelo canto da boca, mas fingi olhar para o palco em preparação, até porque, se
disseste algo foi
tão baixinho, que ninguém ouviu
E, apesar de até haver mais lugares
vagos, pensei para mim mesma que se não estivesses confortável, o dirias. Com
nível ajustado à minha capacidade de audição. E sempre era tão cómico ver-te em
posição de ginasta já fora de idade, ali ao meu lado!
Começou a entrar a orquestra.
Depois o maestro – que, viríamos a
constatar, era bem mais que isso.
E, música!
Pouco depois, o coro. Ficavam um
pouco estranhos, ali em cima, atrás de todos aqueles riscos ao alto. Estranhei
que não brincasses com o tema; ou talvez o tenhas feito, mas
tão baixinho, que ninguém ouviu.
O maestro era alto. Recém-grisalho e
também usava óculos. Enérgico e expressivo. Ora abraçava a orquestra, ora
acarinhava o primeiro violino. Ora convidava ao vigor dos fagotes (um preto,
outro escarlate), ora estirava, corda a corda, bem devagarinho para não quebrar,
grupo de contrabaixos.
O maestro era bem mais que um
maestro. Porque alternava em tal função com a de tocar um “pianinho” (na minha
cabeça, chamei-lhe pianinho, porque
tinha teclas
imagino que, dentro, tinha cordas
não soava a cravo,
tinha, no máximo, 1m de largura,
mas duas fiadas de teclas,
não percebo nada de instrumentos
musicais e, percebendo tu, talvez to tenha perguntado,
tão baixinho, que ninguém ouviu,
talvez mo tenhas dito ao ouvido,
mas,
tão baixinho, que ninguém ouviu).
E eis que surge Galatea! A (inevitável)
Mulher! Linda! Alta! Voz sonante! Vestido verde seco, de seda brilhante,
ondulante, comprido até ao chão; cinto do mesmo verde seco brilhante e
ondulante, abraçando-lhe largura menor e enlaçando-a por detrás; alças largas,
cruzadas nas costas, até aos ombros; despida, no que sobrava.
- És gira. E que bem que ficarias
com este vestido…,
bichanas-me ao ouvido,
tão baixinho, que ninguém ouviu.
“Não dava para mim; não tenho
soutien que se ocultasse e tais decotes não aguentam minhas mamas.”
Acis é pastor e seu canto suave e
sem falsete. Mas tem cabelo comprido. Não gosto de cabelos compridos e embirro
com seu tom.
1º acto passado num instante. Aquele
que termina com a, mais que certa, felicidade eterna.
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No intervalo, de novo, estranhaste minha
distância. Interminável tempo ao telefone e cigarro, casa de banho, café,
- Pode pôr-me um pouco de água fria
no café, por favor? Está mesmo quente!
Góing!
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2º acto. A mãe do lugar 31, fila 25,
zona 2 continua a manter casacos no teu assento. E eu também. E o assento que
teima em não rebater… Mas tão caricato que ficas tu… A meus cantos de olhos,
pelo menos.
Não sei se pelo café com água fria,
se pelo barítono (Monstro Polifemo fazia sua primeira intervenção), senti-me sentir
mais.
Não sei se pelo que bebeste no
intervalo (eu, de facto, nem te vi no intervalo; mas havia quem aproveitasse
para uns copos de vinho, como aquele senhor em cuja mesa estava cinzeiro que
utilizei na esplanada-jardim; talvez o tenhas feito, também), se pelo maior
sentir-meu, se por Galatea em seu vestido-primavera, afoitavas-te. Tão
batoteiro que tu és! E como gostas de bricar com as palavras! Bem baixinho, em meu ouvido direito. Aquele que dava para
o lugar 30, da fila 25, zona 2.
Tão baixinho, que ninguém ouvia.
“Infortunados amantes, esqueçam o
vosso sonho!”
- Se não têm fortuna, o que valem
como amantes? Mais vale sonhar com outros! Sonhas comigo? Dou-te beijos em
pálpebras antes de adormeceres…
tão baixinho, que ninguém ouvia.
“…tonitruante…”
- Deixa-me ser teu toni; para dentro
de ti trovejar. Deixa-me ouvir-te, sussurrando em meu ouvido: “Tóni, ensurdece-me
com teus trovões! Cega-me com teus relâmpagos!!”
tão baixinho, que ninguém ouvia.
E o maestro, em seus gestos:
- Parece um tipo que eu conhecia que
jogava ténis com raquete de ping-pong porque tinha coutos de braços por ter
sido encurralado por moto-ceifadeira, na tentativa de salvar papoilas para
oferecer a uma menina da escola… Salvou umas quantas; vermelhas como seus braços,
que jorravam.
tão baixinho, que ninguém ouvia.
E, de novo, sobre o maestro,
- Coitado; será que lhe falta o ar?
Tenho aqui a minha bomba e cortisona, caso ele precise. Achas que vá lá? E a
ti, falta-te o ar, giraça de calças de ganga e botas-já-mais-que-gastas?
tão baixinho, que ninguém ouvia.
“…gigante…”
- Quando fumava, era disto! Felizmente
deixei. Não tinha tamanho para tal! Desse,
tamanho. Tenho tantos outros tamanhos para tu descobrires…
tão baixinho, que ninguém ouvia.
E o drama, próprio de acto final,
continuava. E Monstro Polifemo com sua sensual voz de barítono matava Acis (e
seu rabo de cavalo, para minha, não explicitada satisfação – admito, torcia por
Monstro…), esmagado sob um rochedo que do nada caía.
- És mesmo gira, sabias?
tão baixinho, que ninguém ouvia.
E, em cima, sombras do coro bailavam
em modo monstrinhos de Polifemo, mas mudos, sem barítono. Orquestra e “pianinho”,
no entanto.
“… amoras…”
e outros frutos.
- Se não tivermos cuidado ao colher,
picamo-nos, porque as silvas gostam muito de se entrelaçar em amoras. Deixas-me
ser teu apelido, minha amora primaveril?
tão baixinho, que ninguém ouvia.
Polifemo, o Monstro, envergava manto
dourado sobre ombros. Grave e cavernoso; maduro e viril.
- De acentos não percebo nada. Como
o provam meus joelhos junto à boca, que quase não me deixam fazer ouvir. Quando
pequeno, brincava em conventos, como se cavernas fossem. Amadureci neles; ao
ponto de cair. Envirilas-te comigo? Num 3º acto?,
tão baixinho, que ninguém ouvia.
“bebe sangue de copos…”
- Ainda se fosse de copas… das XL…
tão baixinho, que ninguém ouvia.
- Apesar de aparentares alguma
loucura (calças de ganga em ópera?, onde já se viu?), és mesmo muito gira,
sabias?
tão baixinho, que ninguém ouvia.
“Sofrer é o destino de quem ama.”
- Isso são os parvos! Fazer batota!
Isso sim, é destino!!! Batutas-me?
A dor que acontece depois da morte. O
Deus que nasce depois da morte. Por ela.
Bem alto, para todos ouvirem.
E eis que o fundo se abre. E se
misturam cénicas com plantadas. Aparecem quietas, como se soubessem que haviam
entrado em cena. A cena. A derradeira. A dos véus negros envergados. Não
resistem a vento primaveril de Oeste que as abraça num sentido só. E deixam-se
ir com ele, sem nunca tombarem, porém. Dois pombos que aproveitam a rara oportunidade
de serem mais amados que odiados. É o auge, o endeusamento, a despedida; todos
eles (cénicos ou apanhados) o sabem.
E palmas. E palmas. E dirigidas. E
barítono que recebe corpos de pé e braços de Galatea e seu vestido verde-seda-despido
comprido de alças cruzadas, que puxam maestro-não-só-maestro para o mais alto
palco para as receber. As merecidas.
Estranhas que me levante do lugar
29, fila 25, zona 2 de forma apressada e que (quase) te atropele em despedida
apressada
- Com licença. Com licença.
Collants azuis e sapatinhos de ópera
a condizer já cobertos por um dos casacos que haviam permanecido no lugar 30,
fila 25, zona 2, não se retraem assim tanto, devido ao sono, mas são tão
pequenos que por lá passo com facilidade.
“Combinei jantar às 21.30 e já é
tarde.”
- Batota…,
dizes,
tão baixinho, que ninguém ouviu,
mas já estou em coxia, ainda batendo
palmas e dizendo “Espectacular”, mas tu não ouves, só lês, porque, apesar de
tão alto, já ninguém ouvia.
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Dirigi-me, em passo (como sempre)
apressado até à entrada que me parecera mais próxima do metro de São Sebastião.
Era outra.
“A caminho”,
para o grupo.
Entrei na carruagem mais próxima e
sentei-me em coxia de lugares a quatro. À direita falavam duas raparigas em
russo (ou similar; para leste da Holanda, não distingo); à esquerda, do lado de
lá do corredor, duas sexagenárias, em português-brasil.
Juro-te; pelo que me é mais sagrado.
Olhei em frente e vi-o. (Re)batido, roçado, mas igual:
o lugar 30, da fila 25, da zona 2.
Tão vazio, que mais ninguém o viu.