Há alturas em que não conseguimos fazer mais nada que não
seja gritar muito alto.
Como somos bem-educados e até preferimos passar despercebidos,
pelo menos enquanto não conseguimos fazer mais nada que não seja gritar muito
alto, gritamos tudo para dentro.
AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHHHHHHHH!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
Acordamos de manhã e gritamos.
Tomamos banho a gritar.
Penteamo-nos sem ver o espelho, vestimo-nos sem combinar,
saímos de casa sem dar por isso e não paramos de gritar.
AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHHHHHHHH!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
Bem para dentro de nós. Ao ponto de já não sabermos o
significado da palavra fôlego, porque, enquanto gritamos muito alto, não
inspiramos, não expiramos, não somos.
Ninguém nos ouve gritar.
Porque somos bem-educados e até preferimos passar despercebidos,
pelo menos enquanto não conseguimos fazer mais nada que não seja gritar muito
alto.
Pontualmente, do meio da multidão, sai alguém que nos encara
bem fundo no olhar e nos vê gritar muito alto.
“Então? Não precisas gritar... tens os teus filhos…”
AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHHHHHHHH!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
“o teu trabalho…”
AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHHHHHHHH!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
“a tua saúde…”
AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHHHHHHHH!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
“os teus amigos…”
AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHHHHHHHH!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
“a tua família…”
AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHHHHHHHH!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
Regressamos a casa, despimo-nos, bebemos uma mini, comemos
– sempre muito alto; deixamos os olhos deambular pelo FB, pela TV, por um
filme, por um livro – muito alto; esperamos que algum deles chegue ao cérebro e
tape de vez ou mesmo que por breves instantes aquela boca que deixámos de
controlar há muito e que teima em gritar muito alto.
Adormecemos a gritar.
E dormimos por fora, enquanto por dentro gritamos muito alto por um amanhã em que apareça
algo que nos cale, que nos abafe o grito e que, nesse amanhã, não estejamos já,
inevitavelmente, surdos. Para dentro.