quarta-feira, 25 de março de 2015

Algo que nos cale


Há alturas em que não conseguimos fazer mais nada que não seja gritar muito alto.

Como somos bem-educados e até preferimos passar despercebidos, pelo menos enquanto não conseguimos fazer mais nada que não seja gritar muito alto, gritamos tudo para dentro.

AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHHHHHHHH!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

Acordamos de manhã e gritamos.

Tomamos banho a gritar.

Penteamo-nos sem ver o espelho, vestimo-nos sem combinar, saímos de casa sem dar por isso e não paramos de gritar.

AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHHHHHHHH!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

Bem para dentro de nós. Ao ponto de já não sabermos o significado da palavra fôlego, porque, enquanto gritamos muito alto, não inspiramos, não expiramos, não somos.

Ninguém nos ouve gritar.

Porque somos bem-educados e até preferimos passar despercebidos, pelo menos enquanto não conseguimos fazer mais nada que não seja gritar muito alto.

Pontualmente, do meio da multidão, sai alguém que nos encara bem fundo no olhar e nos vê gritar muito alto.

“Então? Não precisas gritar... tens os teus filhos…”

AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHHHHHHHH!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

“o teu trabalho…”

AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHHHHHHHH!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

“a tua saúde…”

AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHHHHHHHH!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

“os teus amigos…”

AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHHHHHHHH!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

“a tua família…”

AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHHHHHHHH!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

Regressamos a casa, despimo-nos, bebemos uma mini, comemos – sempre muito alto; deixamos os olhos deambular pelo FB, pela TV, por um filme, por um livro – muito alto; esperamos que algum deles chegue ao cérebro e tape de vez ou mesmo que por breves instantes aquela boca que deixámos de controlar há muito e que teima em gritar muito alto.

Adormecemos a gritar.

E dormimos por fora, enquanto por dentro gritamos muito alto por um amanhã em que apareça algo que nos cale, que nos abafe o grito e que, nesse amanhã, não estejamos já, inevitavelmente, surdos. Para dentro.

quarta-feira, 4 de março de 2015

Carta a todos



Quando eu morrer, deixem-me morrer.

Quando eu morrer, não quero ser mais picada, não quero que me alimentem mais, não quero que me falem, que me ouçam, que me acarinhem.

Quando eu morrer, não quero ser mais ventilada, nem mais vista, beijada ou entubada.

Perceberão que terei morrido. E não quererei ser mais aquecida ou arrefecida, nem que me vejam sequer a temperatura. Nem medicada, nem pegada, nem cuidada, nem vestida, nem apoiada, nem querida.

Por favor. Que nunca seja por um eu que já morreu. Que seja pelos vivos, se preciso for. Que seja por mim, enquanto viva.

Quando eu morrer, deixem-me morrer.
Simplesmente.