Ao longo dos seus já nove anos de existência, o meu filho mais velho tem
tido diversos tiques. Não me recordo se já teve dois em simultâneo, mas já
passou por várias fases, todas mais ou menos banais, como sejam
roer as unhas (já passou pelas das mãos e as dos pés),fazer trejeitos esquisitos com a boca,
comer os dedos,
tirar macacos do nariz,
soltar sons com a língua ou guturais;
não sei se me recordo de todos.
De uma maneira geral, tentamos ajudá-lo a combater os tiques, o que, de
forma emocional não percebo muito bem porquê, mas racionalmente há uma série de
razões que fazem com que tenhamos esta reacção.
Tenho estado com alguma dificuldade com o último tique que adquiriu.
A determinada altura (eu sei a razão; sei, sei!), assim de uma hora para a outra, o futebol passou a ser uma das suas paixões.
É impressionante ouvi-lo falar sobre o Sporting, os jogadores dos vários clubes (nacionais ou estrangeiros), criticar decisões sobre a escolha feita por treinadores para as equipas iniciais, mesmo que do Mundial, de países que eu nem sabia que poderiam algum dia ir a um Mundial, dar opiniões sobre a beleza dos estádios de futebol, argumentar com taxistas sobre o quão melhor é o Sporting em relação ao Fêquêpê (e isto, em plena Invicta, entre Campanhã e a Foz, passando mesmo à beira do estádio do Dragão!).
Pois bem. O meu filho mais velho, agora, joga à bola em todo o lado. Quando
vocês lêem aqui “todo o lado” devem interpretar como sendo em “todo o lado” e
não devem colocar um “quase” antes do “todo”, como é costume fazer sempre que
lemos abrangências universais como “todo”, “tudo”, “sempre”, “nunca”, “ninguém”
e outras que tais.
Todo o lado é:
ao jantar,quando está a lavar os dentes,
no carro,
quando está a fazer os têpêcês,
nas lojas,
enquanto vê uma exposição,
no meio de conversas que temos,
durante a história que leio ao deitar ou mesmo se estiver ele próprio a ler.
Dou por mim a dizer:
João, não se joga à bola enquanto se come.João, se continuares a jogar à bola, não te concentras.
João, aqui dentro, por favor, não jogues mais à bola.
João, é perigoso jogar à bola dentro do carro.
João, olha que ainda dás uma canelada a alguém.
É que não consigo ter outra reacção, mais apropriada à situação.
O meu filho mais velho, em todo o lado, joga à bola.
Junta o indicador ao polegar com o braço estendido e imprime aos dedos o
movimento de projéctil-bola, lentamente, até chegar à testa, cabeceia, novo
movimento calculado em função da massa e da velocidade, até dar um toque suave de
ombro esquerdo, dirigido matematicamente para o joelho direito, que sobe
demoradamente até acertar no esférico com a força e ângulos tais para que o pé
esquerdo, que já está preparado, lançado para trás, receba a intersecção de indicador-polegar
e consiga acertar no exacto ponto em que deve atingir o chuto final em direcção
às redes.
O meu filho mais velho, ultimamente, joga à bola em todo o lado. E em “slow
motion”. Para as câmaras que se instalaram por todo o seu redor e que nada têm
a ver com os olhos que existem em todo o seu redor.
Nesses momentos, ele não está comigo. Está no campo. Possivelmente numa das
suas melhores actuações.Entro nas lojas, verifico que não haja materiais demasiado frágeis nas redondezas, chamo-o à atenção quando vejo que pode agredir um qualquer adversário que ele, concentrado no esférico, não veja que está mesmo à sua frente e fico, adepta fervorosa, a torcer pelo
GOOOOOOOOOOOOOOOOOOLOOOOOOOO!!!!!!!!!,
de Joãããoãããoooooooo!!!! Sem dúvida o melhor jogador em campo esta
noite!!!!
(e que este não seja mesmo no meio de alguma obra de arte de valor incalculável que estejamos a ver naquele momento…)