sábado, 18 de outubro de 2014

O melhor jogador em campo


Ao longo dos seus já nove anos de existência, o meu filho mais velho tem tido diversos tiques. Não me recordo se já teve dois em simultâneo, mas já passou por várias fases, todas mais ou menos banais, como sejam
roer as unhas (já passou pelas das mãos e as dos pés),
fazer trejeitos esquisitos com a boca,
comer os dedos,
tirar macacos do nariz,
soltar sons com a língua ou guturais;
não sei se me recordo de todos.

De uma maneira geral, tentamos ajudá-lo a combater os tiques, o que, de forma emocional não percebo muito bem porquê, mas racionalmente há uma série de razões que fazem com que tenhamos esta reacção.

Tenho estado com alguma dificuldade com o último tique que adquiriu.
 
O meu filho mais velho, quando era pequeno, não gostava de futebol.
A determinada altura (eu sei a razão; sei, sei!), assim de uma hora para a outra, o futebol passou a ser uma das suas paixões.
É impressionante ouvi-lo falar sobre o Sporting, os jogadores dos vários clubes (nacionais ou estrangeiros), criticar decisões sobre a escolha feita por treinadores para as equipas iniciais, mesmo que do Mundial, de países que eu nem sabia que poderiam algum dia ir a um Mundial, dar opiniões sobre a beleza dos estádios de futebol, argumentar com taxistas sobre o quão melhor é o Sporting em relação ao Fêquêpê (e isto, em plena Invicta, entre Campanhã e a Foz, passando mesmo à beira do estádio do Dragão!).

Pois bem. O meu filho mais velho, agora, joga à bola em todo o lado. Quando vocês lêem aqui “todo o lado” devem interpretar como sendo em “todo o lado” e não devem colocar um “quase” antes do “todo”, como é costume fazer sempre que lemos abrangências universais como “todo”, “tudo”, “sempre”, “nunca”, “ninguém” e outras que tais.

Todo o lado é:
ao jantar,
quando está a lavar os dentes,
no carro,
quando está a fazer os têpêcês,
nas lojas,
enquanto vê uma exposição,
no meio de conversas que temos,
durante a história que leio ao deitar ou mesmo se estiver ele próprio a ler.

Dou por mim a dizer:
João, não se joga à bola enquanto se come.
João, se continuares a jogar à bola, não te concentras.
João, aqui dentro, por favor, não jogues mais à bola.
João, é perigoso jogar à bola dentro do carro.
João, olha que ainda dás uma canelada a alguém.

É que não consigo ter outra reacção, mais apropriada à situação.

O meu filho mais velho, em todo o lado, joga à bola.

Junta o indicador ao polegar com o braço estendido e imprime aos dedos o movimento de projéctil-bola, lentamente, até chegar à testa, cabeceia, novo movimento calculado em função da massa e da velocidade, até dar um toque suave de ombro esquerdo, dirigido matematicamente para o joelho direito, que sobe demoradamente até acertar no esférico com a força e ângulos tais para que o pé esquerdo, que já está preparado, lançado para trás, receba a intersecção de indicador-polegar e consiga acertar no exacto ponto em que deve atingir o chuto final em direcção às redes.

O meu filho mais velho, ultimamente, joga à bola em todo o lado. E em “slow motion”. Para as câmaras que se instalaram por todo o seu redor e que nada têm a ver com os olhos que existem em todo o seu redor.
Nesses momentos, ele não está comigo. Está no campo. Possivelmente numa das suas melhores actuações.
Entro nas lojas, verifico que não haja materiais demasiado frágeis nas redondezas, chamo-o à atenção quando vejo que pode agredir um qualquer adversário que ele, concentrado no esférico, não veja que está mesmo à sua frente e fico, adepta fervorosa, a torcer pelo

GOOOOOOOOOOOOOOOOOOLOOOOOOOO!!!!!!!!!,

de Joãããoãããoooooooo!!!! Sem dúvida o melhor jogador em campo esta noite!!!!
 
(e que este não seja mesmo no meio de alguma obra de arte de valor incalculável que estejamos a ver naquele momento…)

sábado, 4 de outubro de 2014

20 peças, 1000 peças, tantas peças


Quando era pequenina gostava muito de fazer puzzles. O meu pai viajava com muita frequência para a “Alemanha” Entre aspas, porque eu acho que sempre que ele viajava para fora do país, eu chamava ao “fora” “Alemanha”. Eu não sei, hoje, se seria assim com tanta frequência - o “muito” e o “pouco” crescem também, como nós, para dimensões diferentes -, mas sei que me lembro muito bem de o esperar naquele “hall” espelhado e em rampa do Aeroporto de Lisboa – aquele que é, hoje em dia, a rampa entre a sala de recolha de bagagens antiga e a já não nova, mas menos antiga (mal sabia eu que um dia conheceria tão bem as entranhas daquele local) -, brincava subindo e descendo a correr, olhava-me ao espelho e espreitava sempre que se abria a porta, jogava com os jogos de espelhos, para ver se era ele que já aí viria.

Trazia-me sempre uma prenda. E eu recordo perfeitamente aqueles puzzles, de poucas peças, em caixa verde. O “muito” e o “pouco” crescem também para dimensões diferentes, mas eu sei que fiz e desfiz aqueles puzzles (eram uns 3 ou 4 diferentes) muitas e muitas vezes, sobre aquela alcatifa verde escura da casa que viria a tornar-se a minha ilha uns anos mais tarde.

O gosto pelos puzzles cresceu comigo. Ficava horas a fio a construí-los, a estudar as peças, as cores, os tons, as formas; os traços dos narizes dos bonecos do Mordillo, os contornos de barcos e janelas de uma imagem de Amsterdão, os reflexos do sol num qualquer relvado cheio de cãezinhos brancos – tão irritantes, estes cãezinhos, bem me lembro. Sempre primeiro os lados. A moldura. Depois o resto. O combate do íntimo.

 
20 peças;

100 peças;

500 peças;

1000 peças;

5000 peças

Tantas peças.

 
Nos puzzles mais complexos, há uma ou outra peça que se encaixa na perfeição – em forma, em cor, em parte de traço – no espaço deixado por entre muitas das restantes peças que o compõem. Às vezes, só passadas várias horas, dias até, por vezes num relance de mais longe, por vezes num olhar mais atento de pormenor, por vezes porque não encontramos a peça certa para o espaço em cor de mesa com que nos debatemos naquele momento, nos apercebemos que aquela peça não pertence ali.

 
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Às vezes, só passados vários anos, vidas até, por vezes num relance de mais longe, por vezes num olhar mais atento ao pormenor, por vezes porque não encontramos a peça certa para o espaço em cor de carne com que nos debatemos naquele momento, nos apercebemos que nós não pertencemos ali.

Encaixamos na perfeição. Contudo.
 
 

Lapónia



E eis se não quando, com o assunto "Lapónia", me aparece um "e-mail" que diz:

"Era só para dizer que a Lapónia existe mesmo... "

Longe de mim.

Nunca, mas nunca!, vou dizer tal coisa aos meus filhos.

Já bem basta o que enchi de lama a minha credibilidade.

Se lhes disser que existe Lapónia e que não existe Pai Natal, ainda vão acreditar que existe um Lago Ness SEM monstro.

Livra!