domingo, 30 de março de 2014

tapas e petiscos


Manhã cedo – sendo Sábado e depois de um deitar não demasiado tarde, mas mais para além do que acostumei o meu corpo nos últimos dias, em que todos se adormeceu sobre um novo romance que se espera que nos encha, em alma –, roupa quente, confortável, de caminhada; carro; rádio alto, indecisão no objecto do ouvir, disco à frente, disco atrás, põe óculos escuros, tira óculos escuros e troca destes pelos de ver que o caminho a tomar é novo, paro no disco 27, salvo o erro, que o número é indiferente, mas hoje a manhã é em Sevilha, ouvindo-me e às restantes 4999 pessoas cantando-o, de início quase tímidos, como se lhe impõe a uma manhã de Sábado, cedo; arrancar.
Cábula na mão direita, averiguar se é estritamente necessário parar para o gasóleo (até porque o regresso será apressado), decidir que não, quanto mais não seja para não contrariar os ouvidos de todo o corpo.
Destino: um especial aniversário. Um pouco para Norte.

Mesmo com cábula, já bem próximo do final (pelo menos do escrito), a fatal frase:
“[…] (atenção aqui, viram à direita mas não seguem pela rua mais à direita porque essa é uma rua estreita de sentido único e sentido contrário). Ou seja, passam pela frente da Câmara Municipal (não pelas traseiras).”, li
ou seja, percebi:
- atenção que já fizeste merda…
Não foi da grossa, felizmente, e a correcção não foi difícil, mas obrigou a paragem forçada para ler tudo com um pouco mais de atenção (e, claro, a que escolhi só tinha 1 sentido, o de para lá - por sinal não era contrário -, pelo que o de para cá não servia, ou não daria em merda, mesmo que não da grossa).
Estacionamento no local combinado, ainda com os 10 minutinhos suficientes para um sumo de laranja natural e um café – não… não sou das que merdam com fatal mistura… -, numa pastelaria mesmo à beira.

Primeira a ver a aniversariante, o que permitiu um maior à vontade dado àquele abraço primeiro, e único, do dia – os abraços são um assunto meu a desenvolver, mas que não cabe neste particular.
Chegadas dos restantes em mais duas mijinhas.
- 15km… não sei bem… deve ser mais ou menos isso…
A aniversariante presenteou-nos com mochilas a condizer, sandes com excelente aspecto – descobri quando comi a minha (de presunto e tomate), junto ao moinho abandonado no alto da 2ª serra, que eram ainda mais excelentes e que tinha um confit de (já não me lembro) divinal e certamente apropriado numa mesa de petisqueiros -, sumo, um envelope cor-de-rosa forte,
- Não podem abrir ainda!!!,
e,  descobri depois, uma esferográfica de cor, um lápis e um quadradinho de massa moldável de cores diferentes para cada um.
Presenteámo-la com um presunto, inteiro!, e um melão casca de carvalho. E eu acho que ela gostou mesmo – dará para excelentes petiscadas!

O melão e o presunto não foram connosco e assim perderam, para além de uma caminhada que se previa de
- 15km… não sei bem… deve ser mais ou menos isso…
(mas que teve de ter um plano B e depois um C, porque os ponteiros correram rápido enquanto que nós - apesar do suor que correu porque afinal o dia até estava quente – corremos mais devagar que as assunções ou as crenças que a organizadora depositara em nós…), uma aventura por serra, mata e sol.
Para além de que:
dentro do envelope cor-de-rosa forte
estava um cartão amarelo forte
para ser preenchido com as canetas de cores fortes
(a minha é azul turquesa e uso-a agora no meu caderno, mas vocês não vão ter maneira de comprovar isso…)
com emoções fortes.
Preparara uma lista com 13+2 perguntas, fortes, que nos foi colocando nas várias paragens que fomos fazendo. Difíceis e exigentes. Obrigaram a neurónios, a memórias, a passar para papel sumo de vida. Gostei.
We are the champions pelo que, where the streets have no name ou, mesmo, onde nem havia ruas, só carreiros, fomos preenchendo sonhos, futuros, passados e incontáveis – lembrei lágrimas e ri-me:
- Depois queimas, não é?
- Não! Como sei que vou acabar demente, vou guardar para todo o sempre!
Esquisita (!...), a senhora…
Suor e verdade: aos 19 anos, tão importante como aos 89.

O almoço esperava-nos a uns mais 4 ou 5 km para Norte, com viagem já de carro, e eu de regresso a Sevilha.
Foi agradável (bacalhau assado, polvo à lagareiro, costoleta de novilho e uns petiscos a arrancar), mas já só cantei os parabéns do carro, de novo, mas sem Sevilha (para usar o altifalante do novo espertomóvel, na altura ainda não em parelha com o carro), rumo a Sul, porque mais havia para este Sábado e às 16:00 em ponto haveria de estar no Teatro Ibérico – usei pela primeira vez o GPS e aquela voz que me manda
encostar à esquerda
virar à direita
percorrer 17km
contornar a rotunda
seguir em frente
sair porque já cheguei ao destino, -
mas não obedeço logo: não se interrompe assim uma serenata onde se vive num país livre e se ama e se é amado sem pedir nada, ou quase nada, que não é o mesmo, mas é igual e se é feliz e se pede perdão aos mortos da minha felicidade.

Audição de piano do J., da M. e do F. e de violino da M. Família, muita.
Com prazer, ouvi a perfeição, a tranquilidade e a clareza da M. ao piano.
Com orgulho, ouvi o esforço, as falhas, a pressa e o cumprimento rápido, quase imperceptível, do J..
Com vaidade, o que é também um orgulho, mas um outro, vi a astúcia, a confiança e a determinação, mesmo na falha, da M. com seu pequeno violino.
Emocionei-me, com o F.
- De singulares, têm vocês tudo!

- Até 2ª, meu amor.
- Até 2ª, meu amor.

“Porque hoy es sábado,
mañana domingo.”

Regressei a Sevilha e percorri o Tejo e subi colinas, objectivo traçado (há-que os ter, nestas alturas) - Sevilha nos ouvidos do corpo, Chiado nos olhos: tinham-me já por diversas vezes falado que a H&M
- vende uns ténis para crianças muito confortáveis, frescos e baratos;
- tem roupa interior gira e barata!,
pelo que assim foi. Chiado e H&M.
(Uma das vantagens de fumar é que nos faz parar e temos um bom pretexto para ficarmos só a observar. Para além do Chiado, gosto de olhar as pessoas, as suas caras, as suas expressões, onde põem as mãos, os ritmos das passadas, as diferenças.)
Saída da H&M, havia um outro objectivo que tentava esconder de mim, mas que já sabia ser incontornável: casa de banho… junto à FNAC…

Poderia dizer que tinha cometido uma loucura, caso tivesse trazido tudo aquilo que tive muita vontade de trazer.
Dei por mim, esta semana, a descobrir que gosto de entrar numa livraria, pegar num livro de poesia, ir abrindo ao acaso e ler. Não seria tal tão estranho se não tivesse sempre tido dificuldade em ler poesia. Não consigo ler poesia!
- Disparate!
ouvi às vezes. Mas é verdade.
Ou era.
Acho.

Estava eu na 6ª feira numa livraria não procurando nada (tinha estado à procura de um CD para oferecer para ouvir com o melão e presunto, mas não havia), só passeando, deixando passar o tempo até à hora combinada com as minhas companheiras de almoço, e dei por mim nesse disparate – abri um livro de poesia, dois, três, vários, ao acaso, dando uns grãos de importância ao título ou ao nome do autor, e dei por mim descobrindo-me. Afinal, a poesia não é coisa que se tenha numa estante e se misture, mesmo que em prateleira à parte, com os “ainda não lidos” à espera que se pegue nesse livro para levar para a cama e se adormecer sobre. Afinal, a poesia é para se comer assim como quem não quer a coisa, qual petisco, azeitona, depenicando aqui, bicando ali, poisando de novo, para dar uma volta mais por aí, num entretém…
- Mãe, vou ali petiscar um poema e já venho!
- Está bem, mas não exageres que a feijoada está quase pronta!

Fiquei de barriga cheia.
Descasquei ene, cuspi alguns, outros achei que tinham pouco sal, demorei-me a saborear mais um, repeti uns tantos; intercalei com umas feijoadas que retirei das prateleiras. Temperei-me com
a tranquilidade da M.
a pressa do J.
a determinação da M. e
a emoção do F.
e devorei-me.

Saí de lá recomposta de refeição:
- 4 de feijoada para adormecer sobre;
- 1 de almôndegas com sabor a banana para lhes dar na 2ª feira;
- 1 de petiscos para debicar.

E, agora, vai mais um pouco da feijoada que restou da semana. Esta é de comer à colher. Fluida e saborosa. Romancearei com ela.
Vou deixar os petiscos, estes, e outros que para aqui tinha em prateleiras, espalhados pela casa para quando sinta um ratinho. E, quem sabe, ainda os leve um dia até Sevilha. Aí, chamá-los-ei: tapas.

“Porque hoy es sabado.”

 

domingo, 16 de março de 2014

Et alia 6 (e meio, já que, depois do cinco houve uma que foi uma espécie de mistura… não o serão todas? Et alias? Sim, serão)




Decidi, hoje, amanhã pode vir a ser diferente, que acho que devo algo a quem me toca.

Tenho por hábito, há muitos anos, dobrar as páginas de livros quando há algo que me toca. Mas este gesto é absolutamente enganador. Porque:

·         por vezes, é todo um livro que me toca e não é por isso que dobro todas as páginas. Chego ao fim, fecho a página última e penso o primeiro. Deixo-me estar. Com ele e com tudo o que me proporcionou;

·         por vezes, pego num livro de uma das prateleiras dos "lidos", abro-o numa dessas páginas dobradas e leio, releio, volto atrás, passo à frente e não re-encontro.

Porque são momentos. Instantes. Fases. Porque leio frases que descrevem com enorme e invejável exactidão o que sinto naquele momento, ou o que senti no mês passado ou algo em que tenho pensado e nem sequer me tinha apercebido.

E, depois, anos depois, esqueço. Já não sou eu, já não é a minha mente, o meu sentimento, independentemente de as palavras continuarem a ter a sua beleza, as descrições serem irrepreensíveis, já não sou eu.

E sou capaz de ler um livro inteiro que me esmaga sem dobrar uma única página. Chego ao fim, vejo e penso – como é possível? Nem uma dobrinha… Até hoje não percebi ainda muito bem qual o critério que está subjacente àquele gesto…

Mas, voltando à decisão. Concluído que esteja um livro, tentarei despejar uma parte, mesmo que ínfima, das dobradelas da vida instantânea, incompreensível, por vezes.

Ao ler este, que me acompanhou desde há uns tempinhos (apesar de ser um livro de estórias fluido, emocionante, até, cada vez demoro mais a ler, mesmo quando absorvida, porque… por várias razões que para aqui não interessam nada), fartei-me de pensar no que moveu os homens há 40 anos atrás e o que falta para mover os homens de hoje, eu incluída, os sem nome, os anónimos, os das aldeias, os ases, os campeões que não ficam nos livros de escola. Tocaram-me os episódios que não ficaram para a História, questionei o que nos diferenciava: a censura?, a prisão?, a união?, o sem ter? o pensar mais no mundo que no umbigo?, a guerra?, a morte do próximo?, as torturas?, a liderança? O que falta, hoje? Onde estão os heróis do bairro? Das esquinas? Das tascas, dos encontros às escondidas? O que me falta hoje? O que falta à minha vizinha? Ao senhor do café, da mercearia? O que é preciso para lá chegarmos? Que censura nos vai, finalmente, tocar a fundo?

Bom… não vou deambular sobre tudo que passou na minha cabeça. Posso garantir que foi muito e não consigo, hoje, num instante, que caiba tudo aqui. Mas cheguei ao fim e quis recordar. Peguei numa das páginas dobradas, reli o título da estória, lembrei e pensei – tocou-me; houve mais que me tocaram, houve até que me tivessem emocionado, mas não há que esconder – esta tem uma dobra no canto superior da página; há que sacaletaliar. Aqui vai.

 

“Nem os génios escapavam

Em Lisboa era a Livrerco. Em Coimbra a Unitas. No Porto a Unicepe. Três cooperativas livreiras de estudantes, criadas nos anos sessenta.

Procurava-se romper o isolamento, gerar novas formas associativas, criar espaços de intervenção cultural, criar tertúlias de conversa e debate, furar as malhas da censura e aceder a livros proibidos ou “perseguidos” e, ao mesmo tempo, obter livros científicos a preços mais acessíveis.

O governo também sabia isso e a cultura só podia ser subversiva. PIDE e SNI mantinham debaixo de olho essas “perigosas” cooperativas.

Volta não volta, lá apareciam dois ou três indivíduos na “culta” missão de vasculhar as estantes e expurgá-las dos livros perigosos para a Humanidade ou ofensivos do Estado Novo e dos bons usos e costumes.

Normalmente, levavam uma lista de nomes de autores ou títulos de livros que tinham por missão apreender e, de vez em quando, deixavam um mandado para interrogatórios a um ou mais membros da direcção.

As coisas complicavam-se para os agentes quando deparavam com um livro de título sugestivo, mas que não configurava na lista. Comunismo era uma das palavras-chave, o livro era “Os três ismos” e o conteúdo até era contrário à ideologia, mas pelo sim pelo não, lá o apreendiam.

Mas se, em vez de Karl Marx, o nome era Carlos Marques… já escapava aos agentes. Quando deparavam com Vladimiro Ulianove não associavam a Lenine nem o José Salinas ao José Staline. Eram nomes que não constavam da lista.

“Um passo em frente, dois à retaguarda”, de Lenine, andou esquecido entre os livros de atletismo e de desporto.

E, durante algum tempo, os livros mantinham-se nas estantes, eram vendidos, até que algum superior, supostamente letrado, os avisava que estavam a ser levados no jogo do gato e do rato.

Irritados com tanta “manhosice” dos subversivos da oposição, entraram dois agentes na Unicepe, ali mesmo da Praça dos Leões, frente à Faculdade de Ciências. Dessa vez, levavam instruções rigorosas para não deixarem escapar nada.

Iam bem industriados para tão espinhosa missão, tinham sido prevenidos e preparados, apresentavam o habitual ar arrogante, lista na mão e cuidadosamente soletravam palavra a palavra, não fosse escapar um, por causa dessa mania dos revolucionários estrangeiros de terem nomes complicados.

Percorreram estante a estante, espreitaram por baixo das secretárias, correram os livros todos, apreenderam uns quantos e até as “Lições de Cálculo Diferencial e Integral” de um matemático de origem russa, A. Ostrowski, editado pela Gulbenkian, foi apanhado em tão cuidadosa busca.

Esgotada a vistoria aos livros, passaram aos posters.

- Aquele deve ser um insurrecto. Vê bem. Aqueles cabelos compridos, aquele olhar, aquelas coisas em cima das linhas deve ser russo ou código pela certa. E o nome, com “w” e “th” e dois “és”, é mais um desses comunas, desses terroristas que andam a pregar contra a fé e a pátria. Não escapa, desta vez não nos apanham desprevenidos!

Pauta com letras de música, um nome tão complicado como Ludwig van Beethoven? Era de mais! Ninguém conseguiu explicar-lhes que aquele era o famoso compositor alemão do século XVIII/XIX. Músico? Essa rapaziada estudantil, filhos de papás ricos, certamente que lhes queriam dar música, convencidos que os agentes eram burros.

Com aquele aspecto, aquele nome e aqueles desenhos, na parede da Unicepe, só podia ser mais um subversivo.

E assim, no final da década de 60, Beethoven, reproduzido em póster, foi apreendido por aqueles zelosos agentes da PIDE.”

Vasco Paiva, in Na outra margem do tempo

 

Resta-me perguntar, não resisto: e hoje? Com que(m) poderemos ser confundidos para que se gargalhe e lute a propósito?

sábado, 15 de março de 2014

Gracias a la vida


(Parêntesis. Por extenso.
Este tinha outro título que não Gracias a la vida. Normalmente, os títulos aparecem-me depois de concluir ou quase concluir. E assim foi. O primeiro. Só que... Podem não acreditar, por mim tanto me faz, mas era exactamente o que estava a ouvir quando acabei de o escrever, ainda no meu word de suporte, a par de vários cadernos espalhados por todas as malas e carteiras, já para não falar na cabeça, onde também escrevo com frequência, antes, por vezes muito antes, de despejar as palavras aqui, sacaletaliando...
Extrema e mágica, esta colisão. Gracias a la vida com gracias a la vida
Fecha parêntesis. E continua a vida. La vida continua. Contínua e sacal).

 
Ao longo desta semana, em várias das minhas viagens de carro, dei por mim a pensar em conformismo e felicidade. Antes de mais, permitam-me que diga: estou bem. Verdadeiramente. Olho para dentro e vejo-me bem, estudo-me como um ser no presente. Por vezes, há que estudar-nos. Sem premeditações. Como que cai sobre nós.
Vejo-me como uma tese. Em fase de análise, dissecação, testes de hipóteses, análise estatística, cálculo de probabilidades; com erro admissível bem perto do máximo. Como o deve ser esta ciência inexacta do viver.
 
 
Mas, estava eu a dizer, dei por mim a pensar por que razão há pessoas que se inconformam com as conformidades da vida. Porque querem mais. É uma razão, uma resposta; e uma pergunta que não acaba. Porque sabem que há mais. Porque o viram, o leram, o sentiram.
Sinto-me uma privilegiada porque sei o que é a felicidade extrema.
Não a vi, não a li, cheirei-a de dentro de mim, saboreei seus sem número de gostos. E, por a ter saboreado e, mesmo sabendo que foram, já, um sem número, acredito na sua infinidade.
 
 
E, já agora e em jeito de parêntesis, até porque me acompanharam no carro nestes dias, algumas felicidades extremas. Mãe de dois, dir-se-ia que teria de os incluir. Estão cá, certamente, mas dei por mim a pensar no comum “o nascimento do meu primeiro filho”. Credinho, cruzes canhoto! Qual felicidade extrema?! Se algo senti (este “se” é mesmo estúpido: se houve algo que se passou, foi mesmo sentir, e “bué”, como diria ele hoje), foi um alívio extremo. Aos poucos vou-lhes tentando explicar estes extremos. Por mim, explicava-lhes todo o Mundo, mas sei que é o Mundo que lhes vai explicar todo o Mundo. Se eu olhar para trás e vir que fui parte deste Mundo, será felicidade extrema.
 
 
Vá-se lá perceber porquê, eles questionam várias vezes o seu nascimento. Aquele preciso momento. Há uma carga tão grande em torno dele que às vezes me pergunto se não será por ser dos momentos que se apagam de vez da nossa memória. Já uma vez li, num livro que se chamava, salvo o erro, “Parto sem dor”, que é um momento tão doloroso para o bebé que acaba por ser traumático e o esquecimento é a ferramenta que a mãe Natureza, na sua versão doce, dá à humanidade para que sobreviva.
Será por isso que questionam tanto?
É difícil explicar que nem sempre se sente a felicidade extrema nesse momento. Principalmente quando se sente de uma vez (aquele instante em que o corpo nu, dela, ainda ensanguentado, ainda ligado, foi poisado no meu corpo nu e, mais que a vi pela primeira vez, amei-a para todas as vezes) e não de outra. Um dia o Mundo há-de-lhes explicar o Mundo.
 
 
Outras felicidades extremas.
 
 
O primeiro beijo. Não, não é o meu primeiro beijo. Ou esse talvez tenha sido também. Eu, pessoalmente, não me lembro (a minha boca está a tentar trair o meu corpo…), mas acredito que tenha sido. Se o parto é um momento que se desaparece da nossa mente por razões de sobrevivência, há momentos de felicidade extrema que também fogem, mas por razões de vida. Não tenho qualquer veleidade em crer que estão todos cá, inesquecíveis, guardados. Até porque têm de dar lugar a outros; ao contrário dos sabores da felicidade extrema, o meu cérebro não tem o dom do infinito.
Apaixonamo-nos e o nosso corpo grita verdade por todo o lado. E por vezes demora anos até que nos leiam. E por vezes nem há quem leia. Mas o momento do primeiro beijo, lido, interpretado, saboreado de um tu que de repente aprende a ler; é felicidade extrema.
 
 
Ver-te pela primeira vez. Descobrir que existes.
 
 
Re-encontrar Elis Regina. E sentir uma que se julgava olvidada, de há muitos anos, assim que se ouve
“sou caipira pira pora nossa
senhora de aparecida
ilumina a mina escura e funda
o trem da minha vida”
que entra agora, neste exacto instante, por dentro de mim, como se fosse o mesmo momento daquela descoberta.
 
 
Um Natal perfeito.
Com todas as suas imperfeições.
 
 
Cinco mil pessoas a cantar Ojala, em Sevilha. Não abrir a boca, só para ouvir todos aqueles sabores.
 
 
As primeiras apresentações deles. Do piano, da festa de Natal, da ginástica, dos projectos, dos gostos e dos não gostos. Muitos primeiros. Sorrisos primeiros, passos primeiros, palavras primeiras, mergulhos primeiros. E segundos. Palavras segundas, sorrisos segundos, sorrisos sempre, corridas muitas. Ouvir “mãe, tu, às vezes, és mesmo a melhor mãe do Mundo!” Com o “às vezes “ incluído!
 
 
Suar para surpreender. Fazer planos às escondidas e esperar pelo momento da descoberta, da oferta, do despejar do suor. Fazer quadros às escondidas, escrever às escondidas, desenhar mapas às escondidas, inventar jogos às escondidas, deixar recadinhos às escondidas, embrulhar às escondidas, esconder às escondidas. Só pelo prazer de o ver, ou a ver, ou os ver desconder.
 
 
Dançar de olhos fechados.
Fazer amor sem saber que fazer aos olhos. Fazer amor sem querer saber que fazer aos olhos.
 
 
Estarmos todos juntos. Com todas as nossas imperfeições.
Estarmos juntos. Tu e eu. E tu e eu. E mais um tu e o mesmo eu. E tu e outro eu.
Entregar-me.
 
 
Devorar sozinha aquele livro. Arrepiar, ao tocar o gelo, em Macondo. Degustar, sem devorar, devagar, quando relemos o mesmo aquele livro.
 
 
Afagar as suas roupinhas que já não servem.
 
 
Estar no meio da mesa, em volta dos caracóis, em volta dos finos, em volta das violas, em volta dos carnavais, em volta da feijoada, em volta da lareira, dentro da lareira, em volta de um nada cheio de muito e, num repente, calar e saber que fazer aos olhos e fechá-los para absorver. Sentir uma festa nos cabelos, mesmo sem mãos. Acreditar na magia.
 
 
Ser adolescente e saber que gostas de mim. Mesmo que não goste de ti, não fazia ideia, juro que não fazia ideia, e sinto uma felicidade tão extrema que… gosto de ti. Afinal.
 
 
Dobrar aquela esquina e ver Lisboa a meus pés, sentir-me apanhada pela imagem, pela beleza, pela existência que passa; percorrer as rochas lá até à pontinha, experimentar um desequilíbrio, fechar os olhos e sentir as gotículas de sal nos meus olhos, na minha boca, nas minhas faces, abrir os olhos e deixá-las fazê-los arder. Deixar-me surpreender pelo belo. À visão, à audição, ao olfacto. Ao tacto.
 
 
Tactear.
Afagar.
Acariciar.
Dar.
 
 
Escrever felicidades extremas.
 
 
Obrigada.
Agradeço-vos porque são vocês que me deixam viver absolutamente confortada por me saber inconformada no conformismo. Nesta ciência inexacta com erro absoluto máximo que é viver.

"Uma mistura de et alia, Lágrima de Preta e Dia de Natal, de António Gedeão - desculpem a heresia -, e de eu" ou "Uma pitada de açucar"


Catástrofe! Tristeza sem fim.

Estava eu a chegar a casa, num dia destes, e deparei-me com um espectáculo que me deixou completamente de rastos.
 


O Natálio – sim, o Natálio, não me digam que já não se lembram dele, cambada de desmemorizados! - tinha tentado o suicídio.
E ali estava ele, semi-morto, combalido, aos meus pés que, felizmente, se detiveram a tempo, antes de o esborrachar e matar para todo o sempre, sem qualquer alma de molar que o recordasse…
Felizmente, os sapos de boas-vindas, mais fofinhos que aquela tão palpável que nos bafeja e desbafeja de quando em vez (não se lembram?! Também não vou dizer! Leiam o resto do blogue, ora bolas! Já é para aí a terceira vez que falo dela!), haviam-lhe amortecido a queda propositada.

 
 
Porquê? Porquê Natálio?
Saudades?
Desgosto de amor?
Falta de atenção?
Não conseguias dormir?
É a Primavera que aí vem e sentes-te derreter?
Deslocado?

Recolhi o Natálio com todo o cuidado, como se de um tubo de ensaio, bem esterilizado, se tratasse.
Olhei-o de um lado, do outro e de frente.
Tinha um ar de enfeite ainda muito decente.
Não mandei vir nada.
Usei o que se lhe impunha em casos que tais.


Nem sinais de queda nem vestígios de pó
Intacto (quase tudo) e um reforço de cola.


(ao fechar a porta, disse-lhe: não te preocupes; não sabes que o Natal é quando o homem quiser? Um dia, leio-te o “Dia de Natal” e verás a sorte que tens:

“Dia de Confraternização Universal,
dia de Amor, de Paz, de Felicidade,
de Sonhos e Venturas.
É dia de Natal.
Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade.
Glória a Deus nas Alturas.”)

Páginas de um corpo


Acredita em mim.

Sempre.

Eu nunca minto.

Muitos por cento das vezes, o que sai da minha boca é a verdade.

Muitos por cento, há coisas que não saem de lá. São verdades que teimam em não se desaprisionar pela boca, mas que fazem do meu corpo seu cárcere em transparência.

Se sabes que não estou bem quando da minha boca sai “estou bem” só porque interpretas o que está escrito por todo o meu corpo, sabes que não minto quando digo que nunca minto. Sabes tu, que aprendeste a lê-lo. Não são páginas para todos. São para tu leres.
E tu e tu.

terça-feira, 11 de março de 2014

Ir ao ginásio é divertido!


A descoberta de um eu novo, um eu mais liberto, revolucionário, despreocupado, é certamente um momento que não pode ser descurado; deve ser apreciado, degustado, reflectido emocionalmente. Um marco para o crescimento do ser-se.

Hoje, encontrei um novo eu, nem imaginam onde: em plena bicicleta imóvel do ginásio. Começou por ser o eu antigo – aborrecido, determinado a ultrapassar aquele sacrifício, ainda por cima com dor de cabeça (a semana do SPM foi a passada…), da melhor forma, pensando em nada ou pouco, com esforço, mas a certeza de que será para um Verão melhor.
Depois… depois a transformação. Veio de repente, sem ninguém se aperceber, nem eu! Começou com uma certa satisfação, depois passou a rir-se sozinho, estava divertido, distraído até, ao ponto de deixar passar dos dez minutos do plano de treinos (valor máximo!) uns fantásticos dois minutos e trinta! E esse eu aventurou-se para a mal-amada elíptica, aquela máquina infernal que puxa dos joelhos (ou das suas formações orgânicas carnosas), de forma monótona: sobe, desce, sobe, desce; roda, roda, roda, roda… e sabem como ele foi? A sorrir, quase rindo, leve, bem disposto! Foi fantástico! A interacção com a máquina ao ponto de esquecer que ela existe: é uma sensação inigualável! Finalmente percebi o que já há tanto me diziam
“ir ao ginásio é divertido!”
 

Não vou esquecer - terças-feiras às 20:00. Daily Show na TV frente às máquinas do ginásio! Não me posso é esquecer dos auriculares…
 
novo eu

quarta-feira, 5 de março de 2014

Et alia 5 - The light, de Yuta Sukegawa



Houve mais que nos marcaram no Play. Aconselho vivamente as proximas edições. Para mim, este foi uma das histórias de amor mais bonitas com que me deparei nos últimos largos tempos.

o que eles dizem...



…e eu, Benfiquista, ouço (ainda no início de Fevereiro) e peço para repetir parte, com pontuação e tudo, ao jantar…

M: Quando o Sporting tinha 1 ano, quantos anos eu tinha?
J: Oh, Maria… Quando o Sporting tinha 1 ano tu nem sequer eras nascida! Nem sequer a mãe!...
M: E quando tinha 4?
J: Oh, Maria! Olha, eu vou dizer-te quantos anos tem o Sporting… O Sporting tem 108 anos!
M: Ah!...
J: Mas o Sporting nunca vai morrer.
M, muito espantada: Não?!
J: Não. Só se todos os patrocinadores deixassem o Sporting e não houvesse mais patrocinadores que o quisessem. E, olha:

“Tu vais vencer
Podes crer
Porque a nossa força
É brutal.

Mais de 1 século
De histórias para contar
Sporting!
Tu nunca vais acabar.”

Vês? Diz que não vai acabar!

M, compreensiva: Ah…


pausa…

M: Então e o Benfica?
J, próximo do exaspero: O Benfica??? Sei lá!!!

terça-feira, 4 de março de 2014

et alia 4



Paco de Lucía Concierto Aranjuez - Adagio

Ontem ouvimos no caminho para lá.
Hoje ouvimos no caminho para cá.
Os meus filhos depararam-se com oo que significa chorar de emoção.
Estou confiante de que entenderam o que seja.
eu

estou bem?...

Fui ao ballet na semana passada. Ensaio solidário de um bailado de Olga Roriz – Orfeu e Eurídice. Antes, comi qualquer coisa no Vasco da Gama.

A solidão levantou-se de uma mesa ao lado e pediu-nos para guardar o lugar enquanto ia buscar o jantar.
- Já todos me conhecem, venho cá jantar todos os dias desde que abriu.
A solidão é velha. E consegue carregar em cima ainda mais anos. Veste roupa também ela velha, coçada, deixando ver um outrora elegante.
A solidão tem uma carteira em pele, bem agarrada, sapatos a condizer, de salto; bambos. Está ligeiramente curvada; é ligeiramente curvada, já não endireitará mais. Anda com passos curtos, ouvir-se-ia um arrastar de pés, não fosse estarmos onde estávamos.
A solidão tem uma voz de mulher segura; louca? Mãos, engelhadas, inseguras. Deixa-se estar sentada vários minutos antes de se levantar, percorrendo todos os lados, apertando bem a mala de pele contra o peito.
A solidão está mais alta que eu, apanha-me quase de costas, olha-nos e explica-nos: vem jantar ao Vasco da Gama desde que abriu. Todos os dias.
A solidão tem olhos brilhantes, em nesga. Tentou pintar-se, mas o baton fugiu-se-lhe várias vezes dos dedos tortos, em ambos os lábios. É rosa escuro. Verniz em unhas estaladas. Blush, sombra carregada demais, talvez já não veja muito bem e só ao espelho perguntou
- estou bem?
antes de sair de casa.

 

 Fiquei na 2ª fila porque acabei por me atrasar. Consegui ver melhor os vôos que as dores. A vida que a morte. Senti as respirações, quase toquei os corpos despidos.

 
 
Cruzar-me com a solidão assim e mantê-la na cabeça até hoje, fez-me reordenar, completar, palavras que têm estado em fase de perseguição mental já lá vai algum tempo.
Ultrapassa-se a solidão, aprendendo a estar a sós connosco. Se, só connosco, não estivermos sós, não sentiremos de certeza solidão.
...
Só...
Só?
...
Algo mais que um espelho a quem perguntar
- estou bem?
antes de sair de casa.

et alia 3

Atraiçoo-me no sonho.

Nele, aquartela-se;
desperta, aquartelo-me.
Esquartejo-o,
quase o odeio,
até que tremor, suor e gelo, trepadeira, traidor.
Traição.
Então, não há quase. Só a mim.

Acordasse um dia lá;
conseguisse, no então, amar a mim a par,
libertação, enfim.
 
Encontrado. Num saco. Portanto, de origem sacal