Estas conversas podem parecer à primeira vista muito fáceis, mas, a verdade
é que puxam por uma pessoa. E mal sabia eu quanto!
Há muito que já havíamos abordado entre nós que era necessário elucidá-los
em relação a este assunto. Mas fomos protelando, fomos vendo sempre à nossa frente
aquelas carinhas pasmas de surpresa e também não contámos que chegassem aos 9 e
7 anos sem nunca se aperceberem de nada. E eu nem imaginava a que ponto.
Fui almoçar com o meu cunhado que me informou que havia tido a conversa com os meus sobrinhos mais novos
e que ainda tentou abordar a questão com o meu João, mas que a conversa, que
ele julgava ser linear para o pimpolho, não tinha sido assim tão esclarecedora.
Tornou-se necessário agir.
Saquei do livro novo que, como se imaginasse que este iria ser o dia da conversa, havia comprado no Sábado
para eles – “2 Histórias de Natal”, de Alice Vieira. Ao almoço abordámos também
que, se eu puxasse o tema, a pergunta de certeza que haveria de sair da boca do
João.
Era arranque de semana sim de arranque de Setembro, depois de férias,
regresso às escolas, pelo que iniciei com aquela frase que digo quando quero
que eles prestem bem atenção à história:
Eu: “Atenção que no fim vou fazer uma pergunta.”
Fui lendo com cuidado a 1ª história (mais longa que o habitual para noites véspera
de escola) a qual contava o que se revelou ser um sonho, de uma menina que
vivia uma vida ao contrário e cujos pais, ignorantemente, não acreditavam no Pai
Natal: “Mistérios de Natal”, chamava-se.
No final, fiquei à espera da boca do João, mas esta manteve-se fechada e de
lá não saiu nada a não ser um:
J: “então e as perguntas?”
“Bolas”, pensei, “não estão a ajudar nada.” E mal sabia eu o que ainda
ocorreria nessa noite…
Perguntei, por fim: “E então? O Pai Natal existe ou não?”
As respostas, foram imediatas, concisas e precisas:
J: “Existe.”
M: “Claro que existe….”
“Bolas, bolas, bolas! Nem um esgar de dúvida?? O que é que eu faço agora?”,
pensei.
Eu: “hmmmm… então onde é que ele vive?”
M: “Na Napólia.”
J: “Na Polónia.”
Eu: “Bom… É Lapónia. Mas só que essa terra não existe. É só imaginação.”
M, como se eu não tivesse dito nada que lhe interessasse: “Não ias fazer
perguntas sobre a história? Porque é que não fazes uma pergunta a cada um?”
“Bom; parece-me que tenho de ir directa ao assunto”, voltei a pensar.
Eu: “Hoje vai ser um pouco diferente. Quero falar- vos sobre um assunto. O
Pai Natal Não existe.”
J: “Não? Mas como?”
M: “Então quem é que dá as prendas?”
Eu: “Hoje almocei com o vosso tio João. Este era um assunto de que vos
queríamos falar já há muito tempo. Como ele me contou que já conversou com o
Francisco sobre isto (que, como sabem, tinha medo do Pai Natal e não estava a
conseguir dormir por causa disso), resolvi que haveria de ser hoje. É tudo uma
história; imaginação. Sabem, antes a mãe não ligava muito ao Natal, mas, desde
que vocês e esta história apareceram, até passou a gostar mais. Porque é uma
emoção e quase que parece mágico.”
J, que se lembrava da questão da irmã: “Mas então, quem é que dá as
prendas?”
Eu: “Nós. Os adultos.”
A Maria lançou-se numa gargalhada e disse:
M: “Mas isso não é possível!! Os adultos não têm tempo para comprar aquelas
prendas todas!!!”
“Ai…”
Eu: “Mas somos nós, os adultos. Sabem, o Natal é uma festa dos católicos em
que se comemora o nascimento de Jesus. Para algumas pessoas, quem dá as prendas
ainda é o menino Jesus. Entretanto, há muito tempo, alguém criou a figura do
Pai Natal e a história de que ele dava as prendas.
J: “Por exemplo, na Holanda não é o Pai Natal, pois não?”
Eu: “Não. Na Holanda é o São Nicolau. Sabem, isto foi uma história que se
inventou. É só imaginação. A mãe, quando era pequena, não se lembra de
acreditar no Pai Natal. Lembro-me que, num Natal, acreditei que tinha sido o
menino Jesus a trazer as prendas.”
M: “Eu acredito no Menino Jesus.”
J: “Eu não.”
Eu: “Eu também não.”
M: “Eu acredito que ele foi uma criança que existiu há muitos, muitos anos.”
Eu: “Ah, Maria. Mas nisso eu também acredito. Acredito que existiu um
menino, Jesus, que existiu há muitos anos. Mas não acredito que, depois de ter
morrido, tenha ido para o céu.”
M: “Ah… Mas nisso eu também não.”
Eu: “Pois, mas há pessoas que acreditam que, quando as pessoas morrem vão
para o céu.” E ainda continuei, mas em voz mais baixa que, apesar de tudo já
era de noite e não sabia em que é que eles iam acreditar ou não quando fossem,
finalmente, adormecer: “ou para o Inferno”.
Gargalhada ainda mais sonora.
M: “Mas isso também é impossível! Se assim fosse, o céu estava cheio de
gente!” e depois, continuando: “Eu tenho uma amiga da escola que não acredita
no Pai Natal e, por isso, não recebe prendas.”
M: “Pois, Maria. Mas isso eu já te expliquei há uns tempos. Há uma série de
pessoas de outras religiões que não comemora o Natal.”
M: “Sim, mas isto é aqui!”
Eu: “Em Lisboa, não há só católicos. Há pessoas de muitas outras religiões.”
M: “Muçulmanos…”
J, que se mantivera calado, só ouvindo e observando (e pensando, eu bem sei…):
“Esses são maus.”
Eu: “Não João, não são nada maus”, aqui achei que não era dia nem hora de
me estender também nesta conversa, mas ficou marcada para um dia mais tarde.
J: “Mas, ó mãe. Como é que é possível que tu nos estejas a dizer que não
existe o Pai Natal?”
Eu: “Se eu te disser mil vezes que tu és feio, mesmo sendo tu tão bonito,
começas a acreditar que és feio.”
J: “Mesmo olhando para o espelho e vendo o mesmo…”
Eu: “Isso.”
J: “ Mas mãe, eu vi o Pai Natal. Daquela
vez em que eu tinha 3 anos e estava abraçado ao pai e de repente fomos à
varanda… ele estava lá!”
M: “E daquela vez, em caso do Avô Sérgio, em que vimos o trenó a passar no
céu…”
Eu: “A imaginação é uma coisa muito poderosa. É o que faz com que a cabeça
dos seres humanos seja algo tão especial e complexo.”
J: “Mas como é possível os meus olhos terem visto uma coisa que não
existia?”
A conversa estava a ser bastante mais complicada que eu imaginara. Mas
também sabia que, com aqueles dois, não podia deixar o tema naquele pé.
Eu: “Não sei explicar melhor, João. Não duvido que tenhas visto, mas não
consigo explicar melhor. Talvez um neurologista ou um psiquiatra. Por exemplo,
sabes que as pessoas que andam muito no deserto, às vezes…”
J, interrompendo-me: “…vêem um oásis.”
Eu: “Isso. Vêem água, mas, na verdade ela não está lá.”
J: “E depois, vão até lá e é só areia.”
Eu: “Exacto.”
J: “Mas no monte, uma vez, ele até escreveu uma carta.”
Eu: “Pois… fomos nós.”
A Maria, que é bastante mais pragmática: “Mas como é que vocês tinham tempo
para comprar tudo aquilo?”
Eu: “Aos poucos, Maria. Ao longo dos dias.”
M: “Mas como é que tanta coisa aparecia de repente, se nós estávamos sempre
todos juntos?”
Eu: “Com muita ginástica. E havia sempre alguém que ficava e tratava disso.”
M: “E era à hora certa?”
Eu: “Pois. Aí fazíamos batota… Sempre fizemos quando dava mais jeito e não
necessariamente à meia noite.”
M: “E onde estavam as coisas?”
Eu: “Na marquise.”
J: “Mas eu fui várias vezes à marquise e nunca vi nada!”
Eu: “Mas olha que estavam lá. Num cantinho.”
M: “E os guizos? Nós ouvíamos os guizos do trenó!”
Eu: “Pois… é um sino que os avós têm…”
M: “E o mapa? No ano passado estivemos a ver no computador da tia Martina
onde ele estava…”
Eu: “Pois, Maria…. Mas é uma história tão antiga que já há imensos jogos e
brincadeiras sobre isso.”
J: “Mas nós gostamos da surpresa… Significa que agora já não vamos ter mais
prendas?”
Eu: “Claro que não, João. Se somos nós que compramos… Olha, eu não me
lembro de ter acreditado no Pai Natal e sempre recebi prendas.”
J: “E podemos dar a nós próprios?”
Eu: “Bom, poder podemos. Mas não é costume. Sabem, não precisamos de ligar
muito a quem oferece o quê. Por isso é que no fim agradecemos a todos. E, se
vocês quiserem, podemos continuar a fazer a mesma brincadeira. E continuar a
ser surpresa.”
Resolvi terminar a conversa por ali.
Beijinhos com:
“10, 9, 8, 7, 6, 5, 4, 3, 2, 1, 0! Descolar para dormir e sonhar com… o Pai
Natal.”
“1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, infinito, dezero! Descolar para dormir e
sonhar com… o Pai Natal.”
Dirigi-me, algo cansada, para a cozinha, fumar o cigarro que se lhe
impunha. Claro está que a Maria não se ficou por ali, como é seu hábito.
M: “Tanta coisa… Como é que tiveram dinheiro para tanta coisa? É que já se
passaram Muuuitos Natais…”
Eu: “Dorme Maria.”
M: “Por exemplo os patins? Quem foi?”
Eu: “Os teus foi o avô Sérgio e a avó Ria.”
M: “E os outros?”
Eu: “Os outros foram a mãe e o pai.”
M: “E porque é que o João não teve?”
Eu: “Porque achámos que ele não ia gostar assim tanto.”
M: “Ahhh… Faz sentido.”
Eu: “Dorme, Maria.”
Ouvi silêncio e julguei que tinha terminado a saga. A certa altura, já em
voz muito baixinha ouvi:
M: “Pode não haver Pai Natal… Mas renas há.”
Desisti e calei-me.