domingo, 21 de setembro de 2014

Depois de leres este “post”, vais continuar exactamente na mesma


Irritam-me solenemente aqueles “posts” no Facebook em jeito de absolutismo:

“Não vai chegar ao fim desta história sem se emocionar”

“As imagens mais bonitas que alguma vez já viu”

“Veja tudo o que sempre ambicionou aqui”

“Este filme vai fazê-lo rir como nunca riu”

“Os 10 cabides mais invejados para a sua casa”


Nunca abro.

Não quero correr o risco de descobrir pelo Facebook que não sou humana.

Mais do que se diz por aqui…


Estava eu deambulando pelo meu caderninho vermelho quando me deparei com um sacal ainda não sacalizado. Nem tudo o que encadernei é sacalizável, mas este, lembro-me bem, nasceu para aqui.

Foi em Abril, fim-de-semana de Páscoa em A-dos-Negros.

O almoço era entrecosto do Rei dos Frangos, ou lá como se chama a churrasqueira.

Estávamos a falar sobre alguma prenda que eles pudessem levar para o pai, com quem iam ter no dia seguinte para comemorar um dia especial.

A minha filha estava determinada em oferecer-lhe um osso de entrecosto muito bem rapadinho, mas a que ela chamava “gaita”. E, conforme chamava, também lhe segurava como se de uma se tratasse. E soprava e guinava sobre os lábios para a esquerda e para a direita, enquanto da garganta lhe saiam alguns sons de metal.

O meu filho olhava para ela com ar enojado.

 

M: “Vou colar um papel na gaita e depois escrevo-lhe uma mensagem”.

J: “Que horror, Maria! Isto é um OSSO!”

Eu, tentando alguma paz: “Sabem Há esculturas muito bonitas e espectaculares feitas em osso?”

A Maria, num repente, tão repente que tive de re-ouvir no cérebro para entender o que ela acabara de dizer:

“Claro. Nós!”

"No creo em brujas, pero que las hay, las hay"


Estas conversas podem parecer à primeira vista muito fáceis, mas, a verdade é que puxam por uma pessoa. E mal sabia eu quanto!
 
Há muito que já havíamos abordado entre nós que era necessário elucidá-los em relação a este assunto. Mas fomos protelando, fomos vendo sempre à nossa frente aquelas carinhas pasmas de surpresa e também não contámos que chegassem aos 9 e 7 anos sem nunca se aperceberem de nada. E eu nem imaginava a que ponto.

Fui almoçar com o meu cunhado que me informou que havia tido a conversa com os meus sobrinhos mais novos e que ainda tentou abordar a questão com o meu João, mas que a conversa, que ele julgava ser linear para o pimpolho, não tinha sido assim tão esclarecedora. Tornou-se necessário agir.

Saquei do livro novo que, como se imaginasse que este iria ser o dia da conversa, havia comprado no Sábado para eles – “2 Histórias de Natal”, de Alice Vieira. Ao almoço abordámos também que, se eu puxasse o tema, a pergunta de certeza que haveria de sair da boca do João.
Era arranque de semana sim de arranque de Setembro, depois de férias, regresso às escolas, pelo que iniciei com aquela frase que digo quando quero que eles prestem bem atenção à história:

Eu: “Atenção que no fim vou fazer uma pergunta.”

Fui lendo com cuidado a 1ª história (mais longa que o habitual para noites véspera de escola) a qual contava o que se revelou ser um sonho, de uma menina que vivia uma vida ao contrário e cujos pais, ignorantemente, não acreditavam no Pai Natal: “Mistérios de Natal”, chamava-se.


No final, fiquei à espera da boca do João, mas esta manteve-se fechada e de lá não saiu nada a não ser um:

J: “então e as perguntas?”

“Bolas”, pensei, “não estão a ajudar nada.” E mal sabia eu o que ainda ocorreria nessa noite…

Perguntei, por fim: “E então? O Pai Natal existe ou não?”

As respostas, foram imediatas, concisas e precisas:

J: “Existe.”

M: “Claro que existe….”

 

“Bolas, bolas, bolas! Nem um esgar de dúvida?? O que é que eu faço agora?”, pensei.

 

Eu: “hmmmm… então onde é que ele vive?”

M: “Na Napólia.”

J: “Na Polónia.”

Eu: “Bom… É Lapónia. Mas só que essa terra não existe. É só imaginação.”

M, como se eu não tivesse dito nada que lhe interessasse: “Não ias fazer perguntas sobre a história? Porque é que não fazes uma pergunta a cada um?”

 
“Bom; parece-me que tenho de ir directa ao assunto”, voltei a pensar.

 
Eu: “Hoje vai ser um pouco diferente. Quero falar- vos sobre um assunto. O Pai Natal Não existe.”

J: “Não? Mas como?”

M: “Então quem é que dá as prendas?”

Eu: “Hoje almocei com o vosso tio João. Este era um assunto de que vos queríamos falar já há muito tempo. Como ele me contou que já conversou com o Francisco sobre isto (que, como sabem, tinha medo do Pai Natal e não estava a conseguir dormir por causa disso), resolvi que haveria de ser hoje. É tudo uma história; imaginação. Sabem, antes a mãe não ligava muito ao Natal, mas, desde que vocês e esta história apareceram, até passou a gostar mais. Porque é uma emoção e quase que parece mágico.”

 
J, que se lembrava da questão da irmã: “Mas então, quem é que dá as prendas?”

Eu: “Nós. Os adultos.”

 
A Maria lançou-se numa gargalhada e disse:

M: “Mas isso não é possível!! Os adultos não têm tempo para comprar aquelas prendas todas!!!”
 

“Ai…”
 

Eu: “Mas somos nós, os adultos. Sabem, o Natal é uma festa dos católicos em que se comemora o nascimento de Jesus. Para algumas pessoas, quem dá as prendas ainda é o menino Jesus. Entretanto, há muito tempo, alguém criou a figura do Pai Natal e a história de que ele dava as prendas.

J: “Por exemplo, na Holanda não é o Pai Natal, pois não?”

Eu: “Não. Na Holanda é o São Nicolau. Sabem, isto foi uma história que se inventou. É só imaginação. A mãe, quando era pequena, não se lembra de acreditar no Pai Natal. Lembro-me que, num Natal, acreditei que tinha sido o menino Jesus a trazer as prendas.”

M: “Eu acredito no Menino Jesus.”

J: “Eu não.”

Eu: “Eu também não.”

M: “Eu acredito que ele foi uma criança que existiu há muitos, muitos anos.”

Eu: “Ah, Maria. Mas nisso eu também acredito. Acredito que existiu um menino, Jesus, que existiu há muitos anos. Mas não acredito que, depois de ter morrido, tenha ido para o céu.”

M: “Ah… Mas nisso eu também não.”

Eu: “Pois, mas há pessoas que acreditam que, quando as pessoas morrem vão para o céu.” E ainda continuei, mas em voz mais baixa que, apesar de tudo já era de noite e não sabia em que é que eles iam acreditar ou não quando fossem, finalmente, adormecer: “ou para o Inferno”.

 
Gargalhada ainda mais sonora.

M: “Mas isso também é impossível! Se assim fosse, o céu estava cheio de gente!” e depois, continuando: “Eu tenho uma amiga da escola que não acredita no Pai Natal e, por isso, não recebe prendas.”

M: “Pois, Maria. Mas isso eu já te expliquei há uns tempos. Há uma série de pessoas de outras religiões que não comemora o Natal.”

M: “Sim, mas isto é aqui!”

Eu: “Em Lisboa, não há só católicos. Há pessoas de muitas outras religiões.”

M: “Muçulmanos…”

J, que se mantivera calado, só ouvindo e observando (e pensando, eu bem sei…): “Esses são maus.”

Eu: “Não João, não são nada maus”, aqui achei que não era dia nem hora de me estender também nesta conversa, mas ficou marcada para um dia mais tarde.

 
J: “Mas, ó mãe. Como é que é possível que tu nos estejas a dizer que não existe o Pai Natal?”

Eu: “Se eu te disser mil vezes que tu és feio, mesmo sendo tu tão bonito, começas a acreditar que és feio.”

J: “Mesmo olhando para o espelho e vendo o mesmo…”

Eu: “Isso.”

J: “ Mas mãe, eu vi o Pai Natal. Daquela vez em que eu tinha 3 anos e estava abraçado ao pai e de repente fomos à varanda… ele estava lá!”

M: “E daquela vez, em caso do Avô Sérgio, em que vimos o trenó a passar no céu…”

Eu: “A imaginação é uma coisa muito poderosa. É o que faz com que a cabeça dos seres humanos seja algo tão especial e complexo.”

J: “Mas como é possível os meus olhos terem visto uma coisa que não existia?”

 
A conversa estava a ser bastante mais complicada que eu imaginara. Mas também sabia que, com aqueles dois, não podia deixar o tema naquele pé.

 
Eu: “Não sei explicar melhor, João. Não duvido que tenhas visto, mas não consigo explicar melhor. Talvez um neurologista ou um psiquiatra. Por exemplo, sabes que as pessoas que andam muito no deserto, às vezes…”

J, interrompendo-me: “…vêem um oásis.”

Eu: “Isso. Vêem água, mas, na verdade ela não está lá.”

J: “E depois, vão até lá e é só areia.”

Eu: “Exacto.”

J: “Mas no monte, uma vez, ele até escreveu uma carta.”

Eu: “Pois… fomos nós.”

 
A Maria, que é bastante mais pragmática: “Mas como é que vocês tinham tempo para comprar tudo aquilo?”

Eu: “Aos poucos, Maria. Ao longo dos dias.”

M: “Mas como é que tanta coisa aparecia de repente, se nós estávamos sempre todos juntos?”

Eu: “Com muita ginástica. E havia sempre alguém que ficava e tratava disso.”

M: “E era à hora certa?”

Eu: “Pois. Aí fazíamos batota… Sempre fizemos quando dava mais jeito e não necessariamente à meia noite.”

M: “E onde estavam as coisas?”

Eu: “Na marquise.”

J: “Mas eu fui várias vezes à marquise e nunca vi nada!”

Eu: “Mas olha que estavam lá. Num cantinho.”

M: “E os guizos? Nós ouvíamos os guizos do trenó!”

Eu: “Pois… é um sino que os avós têm…”

M: “E o mapa? No ano passado estivemos a ver no computador da tia Martina onde ele estava…”

Eu: “Pois, Maria…. Mas é uma história tão antiga que já há imensos jogos e brincadeiras sobre isso.”

J: “Mas nós gostamos da surpresa… Significa que agora já não vamos ter mais prendas?”

Eu: “Claro que não, João. Se somos nós que compramos… Olha, eu não me lembro de ter acreditado no Pai Natal e sempre recebi prendas.”

J: “E podemos dar a nós próprios?”

Eu: “Bom, poder podemos. Mas não é costume. Sabem, não precisamos de ligar muito a quem oferece o quê. Por isso é que no fim agradecemos a todos. E, se vocês quiserem, podemos continuar a fazer a mesma brincadeira. E continuar a ser surpresa.”

 
Resolvi terminar a conversa por ali.

Beijinhos com:

“10, 9, 8, 7, 6, 5, 4, 3, 2, 1, 0! Descolar para dormir e sonhar com… o Pai Natal.”

“1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, infinito, dezero! Descolar para dormir e sonhar com… o Pai Natal.”

 
Dirigi-me, algo cansada, para a cozinha, fumar o cigarro que se lhe impunha. Claro está que a Maria não se ficou por ali, como é seu hábito.

M: “Tanta coisa… Como é que tiveram dinheiro para tanta coisa? É que já se passaram Muuuitos Natais…”

Eu: “Dorme Maria.”

M: “Por exemplo os patins? Quem foi?”

Eu: “Os teus foi o avô Sérgio e a avó Ria.”

M: “E os outros?”

Eu: “Os outros foram a mãe e o pai.”

M: “E porque é que o João não teve?”

Eu: “Porque achámos que ele não ia gostar assim tanto.”

M: “Ahhh… Faz sentido.”

Eu: “Dorme, Maria.”

 
Ouvi silêncio e julguei que tinha terminado a saga. A certa altura, já em voz muito baixinha ouvi:

 
M: “Pode não haver Pai Natal… Mas renas há.”

 
Desisti e calei-me.

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

A família harmonia


A família harmonia é composta por:

uma mulher com os seus 40, 45 anos;

um homem com os seus 45, 50 anos;

um rapaz com os seus 18, 19 anos;

um rapaz com os seus 15, 16 anos;

uma criança, também rapaz, com os seus 5, 6 anos.
 

A família harmonia costuma chegar à praia não antes das 13:00 horas.

Da família harmonia, não se ouvem vozes altas. Mas há sorrisos e “bons dias”. Mesmo que ás 13:00 da tarde.

Na família harmonia destaca-se o carinho físico. Há contactos físicos.

O rapaz de 18, 19 anos acaricia a mulher. Vê-se amor nos seus gestos.

O rapaz de 15, 16 anos abraça o homem. Dá-lhe festas nos ombros. Fala pouco. De boca que se abre.

O homem abraça, dá colo, brinca, leva às costas a criança, depois de acordada da sesta que se repete todos os dias na areia.

Os 3 rapazes passeiam até ao mar.

A mulher e o homem descem de mão dada até ao mar.

Jogam os 5 à rabia.

 

Durante mais de 1 semana, a família harmonia harmonizou na palhota ao lado da nossa. Nunca se ouviu um berro. Nunca se ouviu um grito. Nunca se ouviu uma zanga. Tudo harmonia.

Sempre sorrindo, muito bem educados, bonitos e bem vestidos.

Até ao final fiquei sem saber com exactidão como se relacionava, em termos de parentesco, a família harmonia. Mas, a quem possa interessar, a família harmonia não era família de

o pai,

a mãe

e seus três filhos.

Mas sei que, na família harmonia, havia:

uma mulher, que era mãe;

um homem, que era pai;

um rapaz de 18, 19 anos, que era filho;

um rapaz de 15, 16 anos, que éerafilho; e
 
uma criança, de 5, 6 anos, que era filho. E irmão.

Dobras – Os Memoráveis, de Lídia Jorge


Eu não vou conseguir passar para palavras minhas, coerentes, tudo o que se passou durante as páginas devoradas:
enquanto caminhava, junto ao mar (ganhei este hábito há anos atrás, depois de observar e pensar que seria capaz de gostar daquilo);
à noite, na cama;
à noite, no pátio;
à tarde, no café;
à tarde, na areia,
de “Os Memoráveis”, de Lídia Jorge.
Eu não vou conseguir transpor para aqui
a ânsia de chegar ao fim sem nunca chegar ao fim;
a curiosidade;
o desejo de querer saber mais, saber tudo;
a vergonha de não saber mais;
a inveja de não ter escrito a relação-silêncio com aquelas não-palavras;
o querer falar sobre o
que senti durante “Os Memoráveis”, de Lídia Jorge.
 
Acima de muito, gostei muito de o ter lido – por causa do há muito 25 de Abril, mas, muito, porque o vi como um retrato do meu país de hoje, mostrado por um jogo de real-ficção desse dia memorável, mesmo a quem nasceu depois dele.
Foram umas páginas excelentemente bem passadas. Não tive dúvida da dobra escolhida. Que foram duas. Em página e contra-página. Em passado e para os meus.
 
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“A viúva suspirou, acabou por condescender - «Mas já que vos interessa tanto, tenho a dizer que, para ele, o momento mais emblemático parece-me ter sido aquele em que a sua coluna avançou pela Rua Augusta adiante, depois da capitulação da Cavalaria 7. Ele dizia que a uma certa distância, iriam pela zona da Rua da Conceição, se virara para trás e lhe parecera que o relógio do Arco estava parado. Dizia que tinha tido a impressão de que a cidade estava parada à espera, dizia que tinha tido a ideia de que não poderia pensar muito no que estava a acontecer para não pensar em nada que não fosse no passo seguinte, disse que viu o relógio parado e pensou que estava a dar a corda a um relógio, que as pessoas vinham aclamar à passagem da coluna, mas que ele não ouvia ninguém, só se ouvia a dar corda ao relógio do Arco. Contou o meu marido que ao dar a volta ao Rossio, quando as tropas de Infantaria 1 se renderam em frente ao Teatro Nacional. Ele dava corda ao relógio e começava a ouvi-lo trabalhar. Tanque tanque, tanque tanque. Dizia que as horas do relógio tinham começado a bater dentro da sua cabeça. Ele próprio o escreveu. Disse que foi assim que teve a capacidade de espera, de aguarda e de silêncio, que teve nervos para acalmar as multidões, para desencadear o fogo contra o Quartel do Carmo e para mandar parar o fogo, nervos para aproveitar os intermediários, e nervos para ir falar com o chefe do governo que estava a ser deposto, nervos para continuar a oferecer a sua vida, por um relógio a que ele dava corda sem cessar, devagar, rodando o mostrador, dizia ele, ele e os outros a darem corda àquele relógio parado que acabava de arrancar. Dizia ele que sabia que cinco mil homens, naquele momento, estavam a fazer rodar as agulhas sobre o mostrador da história. Que o mostrador surgiu iluminado quando a primeira hora da liberdade chegou. Contou o meu marido, já depois, quando passados dois dias pôde voltar para casa para fumar o seu cigarro. Foi muito lindo, dizia ele. E eu concordo. Tão lindo que se tornou difícil sobreviver àquele momento. Agora sou eu quem o está a dizer. Sou testemunha. Quem uma vez faz rodar as agulhas sobre um tal mostrador, em seguida, passa a conviver mal com a batida regular das horas. Difícil sobreviver aos dias, meses, anos que vem depois, quando o bater das horas já se transforma em rotina. Por isso mesmo, ele dizia que não se deve repetir por demais que foi lindo, porque se pode tornar ridículo de morte junto de quem já nasceu a ouvir bater as horas do relógio com regularidade. Ele dizia que tinha sido lindo para nós, que tínhamos o relógio parado, mas os vindouros, esses, dizia o meu marido, não precisavam de saber que uns tantos se dispuseram a dar a vida para fazer andar o relógio do Arco. O meu marido costumava dizer que não devemos encher a cabeça daqueles que vieram depois com a invocação daquele dia. Que feliz mesmo seria o dia em que todos pudéssemos esquecer que eles foram necessários, e até existiram. O meu marido era assim, desprendido. Um herói da retirada, o meu marido.» Disse a viúva, tentando desprender o micro da orla do decote.”
 
in, Os Memoráveis, de Lídia Jorge

- Muito bom dia! O que deseja?


Sou muito sensível à simpatia (genuína, ou, pelo menos, enganavelmente genuína) das pessoas que me atendem em lojas.

São algumas aquelas aonde não mais volto porque foram antipáticos ou pedantes ou mal-educados e basta que tal ocorra uma vez para lá não voltar a por os pés.

Num exemplo, prefiro ir de carro a um supermercado longe para comprar alimentos sem glúten (aos quais, supostamente, estou obrigada), do que voltar a entrar numa loja de produtos “naturais” que existe meia dúzia de portas acima da minha, só porque, numa vez, tive o “azar” de lá ter ido em dia e hora de inventário, manual, e nenhum dos dois empregados se dignou levantar a cabeça ou, mesmo sem a levantar, nenhum murmurou um

“peço desculpa; é só mais um bocadinho.”

mesmo estando eu de pé, à frente deles, a 20cm deles, à espera de pagar, uns longuíssimos minutos. Nunca mais lá voltei. Nem mesmo para fomentar o comércio de bairro (de que tanto gosto).

Nunca mais voltei á sapataria também mesmo ali ao pé, ou a duas lojas de roupa do centro comercial Saldanha Residence – uma por pedantismo, outra por falta de educação mínima que associo a profissionalismo -, ou ao quiosque da Passos Manuel, logo a seguir ao Jardim Constantino, ou à frutaria de uma das ruas perpendiculares à minha – por antipatia, pura e dura.

Eu estou a falar de antipatia, mas a mesma sensibilidade se aplica à simpatia (a genuína, aquela!). Ao meu grau de sensibilidade.

Sempre que vou à frutaria junto ao Jardim Cesário Verde (que, para além de ter fruta muito boa, tem sempre quem atenda com um sorriso de cara, mesmo que muito distante na língua - pelo menos na de origem), acabo por comprar fruta que dá para alimentar uma família com 5 filhos durante 2 semanas. De uma vez, paguei um balúrdio no final, só porque me deixei enternecer pelo sorriso do rapaz que enchia o saco de nozes e que me fez distrair da quantidade que efectivamente precisava. Há um restaurante na Passos Manuel que até é um pouco escuro e a comida (apesar de muito barata) não é nada de especial; mas não há empregado nenhum (e são, pelo menos, uns 4, conhecidos há pouco mais de 1 ano) que não me pergunte pelos meninos, que não lhes fale quando eles vão lá, que não me pergunte se está tudo bem comigo.

No outro dia, estava com o meu filho, e precisava de fazer algum tempo até que me viessem trazer a minha filha. Saímos do futebol e fomos almoçar ao H3 do Saldanha Residence (lugar suficientemente central para o objectivo) e entrámos numa loja que não fomentaria (julgava eu) uma cena enorme de

“compras-me isto?”

“quero aquilo.”

“olha que coisa tão gira para levarmos para a Maria!”

mas que também desse para encher o olho sem gastar dinheiro sem propósito.

Saí de lá com um saco grande, cheio de utilidades-mas-não-tão-úteis-como-isso para a casa e para mim (um massajador de banho que já tentei usar, mas não consegui - até hoje ainda não percebi qual o lado que massaja…), umas esferográficas para ele e para ela (como se não as houvesse cá em casa em número e desaparecimento suficiente), um caderno – Tão giro! Principalmente para princesinhas que gostem de borboletas! – para ela, uma cobrinha que pregava sustos e cheia de magia – E há cor-de-rosa! – para ambos e já não me lembro mais o quê, possivelmente derivado da crise de amnésia que nos assalta nas anárquicas férias grandes. A rapariga que atendia, o seu sorriso genuíno e o seu à-vontade comigo e com o puto que deambulava por tudo quanto era canto (na verdade, éramos os únicos clientes da loja), foram-me irresistíveis. Já lá voltei para “fazer tempo”. Nunca saio de mãos a abanar. E já lhe disse. À rapariga. Que é muito simpática.

 

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Tirei o 31 de Julho de férias. A Maria quis ir à escola de manhã (era a white party e a despedida final para as férias – que, na verdade, já haviam começado antes, mas que, dadas as vicissitudes das férias-grandes-não-tão-grandes-assim dos pais que trabalham, a tinham feito ir à escola nessa semana), o que até me foi útil para estudar o tema que se desenrolaria (ou talvez não) durante essa mesma tarde:

“Bom dia.”

“Bom dia!”

O sorriso da rapariga cativou-me logo. E apercebi-me logo disso.

Ela percebeu logo que eu estava lá para perguntar e não só para ver – também me irritam os empregados cola, chaga, demasiado “vendedores”. Fui perguntando e ela foi respondendo:

“Os que temos são estes. São todos anti-alérgicos.”

“Para criança, depende do gosto. Mas estes são os mais pretendidos”

“Não dói nada. Mas é algo que só costumamos fazer quando cá estamos duas pessoas para serem as duas em simultâneo. Assim não se assustam com a primeira.”

“Agora, de manhã, só cá estou eu. Mas a partir das 15:00, já estaremos duas.”

“Ou, se preferir, também temos lojas noutros sítios…”

“Depois, são 6 semanas (eu aconselho 8) com estes; e, durante 1 ano, tem de andar sempre com uns postos.”

“Mas, já que não tem, eu acho que seria marcante se a mãe alinhasse também!”

Riso escondido, de disparate…

“Ainda por cima numa data tão especial!”

 

Voltei a sorrir, tinha todas as informações, e saí.

 

Buscar à escola, dar um grande abraço e almoçar numa esplanada. Com o co-proprietário da ideia: o pai. A pergunta, a certa altura:

“Sempre queres?”

A princesa, em imediato:

“Claro que sim!”

 

De regresso à mesma loja – havia descrito as informações da manhã e estas haviam surtido o efeito de “sim; vamos lá.”

Efectivamente, duas funcionárias, embora nenhuma a da manhã.

Os mesmos sorrisos (os genuínos), o mesmo à-vontade, a mesma disposição. Alguma controvérsia na escolha:

“Esses são tão grandes Maria.”

“Esses são tão brilhantes, Maria.”

“Com bonecos nem penses, Maria.”

“Não gostas destes, Maria? São pequenos e cinzentos. Dão com tudo, Maria.”

A escolha foi pouco orientada. Assim que ela põe uma decisão na boca, não há quem a tire de lá. O nervoso miudinho, a preparação. O choque e

“Já está!”

“Agora fixe, fixe, era a mãe fazer também!”

 

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Aos 38 anos de vida (uma; aos sete, outra), graças à euforia de datas especiais, mas muito graças à simpatia sem par de 3 raparigas da loja Claire’s de Telheiras, mãe e filha mutilaram seus lóbulos orelhais:

“um mal-me-quer dourado com pétalas de várias cores”

“uma esfera o mais pequena que tenha, cinzenta”

E saíram com dois certificados de “eu furei as orelhas e nem sequer chorei!” na mala.

 

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Na Rua de Dona Estefânia, bem junto à frutaria dos simpáticos, duas portas acima, há uma funerária. Desde este dia que atravesso a rua sempre que passo por aí… Não vá serem simpáticos...

sacalizando....


Estava eu muito bem,

conversando sobre trivialidades

com, aparentemente, muita importância

(em tom),

quando:

fui engolida.

 

Imediatamente antes do sucedido,

ainda olhei em volta.

E era capaz de jurar que não havia uma única boca aberta,

sob olhos escancarados,

num raio de muitos quilómetros.

Regressando

Ainda não saí de Cabanas de Tavira.
 
Os primeiros quilómetros têm a força de aceleração gravítica e falta de bagagem no peito.

Tinha pensado vir de véspera.

Tinha pensado vir de manhã.

Saí por volta das 18:00.

Beatles.

Descubro

que sinto um nó que não tem localização exacta.

N125, em tom cobre, verifico o depósito grande de água, mencionado de véspera, logo ao virar à esquerda e, enésima micro-rotunda depois

decido

que no próximo ano temos de nos arranjar de forma a que não regresse sem eles. Não suporto regressar sem bagagem.

Continuam os Beatles (que já vinham da viagem anterior). Apercebo-me que, na cassete que tinha há muitos anos, trocara uma ordem ou outra. “Yesterday” não se encaixa aqui.

Passam carros; passo carros. Fico a pensar no assunto e nem chego à bomba de gasolina e já

descubro:

“Que disparate! Eles ficaram óptimos.”

Belisco-me.

Relembro uma conversa-de-praia de véspera em que faláramos do ser profissional, nos nossos desejos para quando “forem grandes”, no gostar do que se faz.

 

Grande rotunda, pouco antes da A22.

Descubro

que estar desempregado é uma grande merda. Não se regressa a nada. Nem se regressa.

 

Área de serviço de Olhão.

Decido

Que tenho de lhes dar a conhecer Beatles. Para que cantem comigo no carro.

 
Metros após e

descubro

que os óculos de ver haviam caído para entre-banco-e-consola e que terei de fazer uma paragem forçada algures.

 

Saída para Faro e

decido

que terei de lá o levar. Em modo turista e de conhecimento. Sem dores.

 

Loulé centro.

Descubro

que não farei a viagem a Faro como a imaginara 5 minutos atrás porque essa viagem já não existe.

 

A2, Castelo de Silves.

Descubro

que já muitos anos haviam passado desde que ouvia aquele mesmo álbum, em Vieira de Leiria, primeiro, em vários outros sítios, depois. O peso sobe, começo a cantar bem alto

“Hey Jude,

Don’t let me down.”

Esqueço-me que o tempo existe; que a A2 existe. Recordo-me do não-sei-quantos que cantava “Let it be”, de que a minha irmã tanto gostava. Há tantos anos… Amareja-se-me o olhar lendo da memória

“The long and winding road

That leads to your door”

Decido

que sou gaja para ser feliz.

Descubro

que a matéria é suficientemente boa.

Descubro

que é só entrar na viagem e observar.

Decido

que vou gritar alto:

“Many times I've been alone

And many times I've cried

Any way you'll never know

The many ways I've tried.”

 

Messines

Descubro

que a primeira decisão da jornada é um perfeito disparate. Que um dia parto eu; um dia partem eles. E que o regresso a casa não depende dos bancos de trás para que seja feito sozinho ou acompanhado.

Ponho o pé no acelerador, desligo o rádio por uns minutos, ouço silêncio, perscruto a serra laranja, ligo o rádio, mudo o CD para Rádio Macau e

decido

iniciar viagem.

 

Decido.

Almodôvar

Vou enviar um mail à Sara e desafiar para noitada na 6ª!

Aljustrel

Vou chegar a casa e sair para comer uma tosta de frango e beber uma caipirinha antes de me deitar!

Beja

Vou pela 25 de Abril que hoje é 2ª e não há como regressar à visão de Lisboa por Almada!

Grândola

Vou ligar ao Nuno e dizer-lhe: “como raio fizeste a viagem em 2 horas, se eu lhe estou a dar bem, já vou em 1 hora e vinte e sei bem que ainda me falta 1 hora?”

Alcácer

Vou encontrar mais, a quem não tenha de falar toda a verdade, só a verdade e não mais que a verdade e, mesmo assim, ser verdadeira.

A6, A13

Vou enviar uma mensagem à Zé e colar-me para irmos todos à festa do Avante daqui a 2 semanas!

 

Marateca

Descubro

que, desde que iniciara viagem, só havia tomado decisões e grito para quem queira (possa) ouvir que a vida só faz sentido se feliz.

E abrando para fugir da ideia de euforia.

 

Setúbal

Mudo o CD de novo. Rock português anos 80 (a ida à FNAC na véspera de férias com o propósito específico de CD’s para viagens a 5€, tinha sido proveitosa).

Volto a acelerar.

Descubro a Serra da Arrábida.

 

Almada

Cheiro o Tejo.

Desvio-me da faixa da esquerda porque

decido

ouvir 7ª Legião sem ruído, como quando tinha 14 anos, no Luso, cassete oferecida com amor que nunca foi.

Debruço-me sobre Lisboa.

Estaciono junto à porta da tasca da minha rua.

Ouço:

“A senhora está muito carregada…”

da velha da tasca.

“Pois estou.”, respondo.

“Muito”, penso.

 

Escada do prédio

Descubro

que as malas de regresso são menos, mas mais pesadas.

 

Casa de banho

Descubro

três formigas que me saúdam do lavatório. Mato duas.

 

Cozinha

Descubro

que o “antúrio-vermelho-que-julgava-mais-que-morto-e-que-eu-sei-que-tem-outro-nome” ressuscitara com uma flor perfeita, viva, decidida, armada em vencedora junto à janela.

 

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Saio para uma tosta de frango e uma caipirinha.

- Desculpe, mas acabou-se a cachaça…

Bebi um mojito.